sábado, 18 de dezembro de 2010


 



Ao Velho Noel (Bola na arvore) *

Pelo sagrado milagre de minha imortalidade, neste pedaço de papel eu lhe envio um aviso prudente. Não sei quando e nem como, mas uma criatura de outro planeta e de outra Mãe Natureza, má de tudo e sem sentimentos, vai atacar seu lar. Tratou de dar cabo de meus pêlos e minha sagacidade. Reconheci o corno singular que sai do pulso. Atrocidade! Fui levado até sua nave e vi uma lista reveladora e trágica. Há alusão a tua figura. Deixo-te como posso o aviso. Espero que chegue pela Cegonha.

Coelhinho da Páscoa (Patinha de neve) *



Vindo da galáxia anã “Grande Nuvem de Magalhães”, Mantú retorna ao planeta Terra. Ele segue em direção ao Pólo Sul para dar continuidade a sua lista de caça.

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Jesus Cristo ⌂ ┼ ﻻ ﻹ ﻵﻍ ﻊ ﻒ ﭢהּ שּׁ ◙
Ghandi ⌠⌡◘ Ludwig Bonaparte Winston Colombo Da Vinci
Charles Darwin Diana Dickensﻍ Walt Disney Edison Albert E = MC²
Federico Fellini ﻍBenjamin Sigmund Galilei Hendrix
Alfred Hitchcock Adolf Ж Houdini Michael Jackson Kennedy Luther King
Kubrick Vladimir Lenin Lennon שּׁ Vurukatte Abraham Marley Michelangelo
Wolfgang Amadeus Deus◙ ﭢ Paul Newmanﻍ Louis Pasteur Picasso
Platão Aristoteles Poe Grigorij Rasputinﻵ Rembrandtﻍ Shakespeare Josef Stalin Teresaﻍ Nicola Tesla שּׁ Twainﻍ Vincent Van Gogh Orson Welles Malcolmﻵ ﻵ Azazel Lúcifer Gang do Lixoﻵ Curupira Kappa Lymantrid Moth Coelho Pascoal
Papai Noel (São Nicolau, Nicolas, NOEL ⌂ הּ) Ж Julian Assange Ж Roussef



Ỗٯلفאָ ףּ⌡۝۞۩
Mantú

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Planalto Antártico – 3. 247 metros sobre o nível do mar - 23 de Dezembro

A nave pousa e derrete a neve macia ao redor do seu perímetro. A superfície contém inscrições em diversos idiomas, riscados ao lado de pictografias primitivas e hieróglifos. Na parte de cima, há uma estrela de quatro pontas preenchida por uma cabala de doze casas que representa os signos do zodíaco.
O caçador extraterrestre salta de dentro da estrutura e cai macio na neve. Com a certeza de estar oculto, volteia o corpo com uma manta escura. Encurva-se e parte em direção as parcas luzes que bruxuleiam no horizonte. A neve floca no ar sem intervalos. Mantú ajoelha e afunda as coxas no terreno até a cintura. Fecha os olhos e pensa a respeito da posição das estrelas, a temperatura, o sabor e a intensidade da neve. Ele segue em frente até beirar um pequeno penhasco. Avista no centro do planalto um castelo de pedras ovais.

Treliças estaqueadas no chão contornam o castelo solitário. Mantú resvala as pontas da cerca com a palma das mãos e, utilizando sua altura, atravessa com facilidade para o lado de dentro. Ao tocar o solo, os pés não afundam como o esperado. Raspa a primeira camada de gelo e observa o próprio reflexo. Está em um lago congelado que contorna todo o planalto. O corpo esguio move-se com a articulação em espiral. Um pequeno tornado alienígena avança rumo ao primeiro portão.

Na torre Pai Natal, o Menino Confete, anão mais novo da família dos Bardos, maneja um binóculo com destreza, acompanhando o movimento do espiral que surge na extremidade norte do lago. Sem tirar o tubo dos olhos, pressiona dois botões no painel e brada a plenos pulmões:


“No extremo da cercania/
um estranho espiral surgia/
Observem nas torres o fenômeno/
acordem quem já dormia/
será que dessa moda/
Noel já sabia?”.


No dormitório Chocolate, ainda sonolentos, os anões Bardos escorregam de suas camas e correm em direção a Maximizada Janela Rotacional.

– Confete não cantou o lado que vem o tal espiral. – Diz Selanofix, erguendo sua ceroula listrada até os joelhos.

– Vamos dar uma panorâmica. – Decide o Eterno Aprendiz Sardentinho.

O teto ergue-se por quinze metros e a sala alarga-se por mais quinze e começa a girar lentamente. Na metade da primeira volta os anões Bardos observam a escuridão da noite. Neste tempo, adentram a sala os duendes de Raiz, ouriçados com a perturbação do dormitório subterrâneo.


– Calem-se, verrugas. Olhem para aquilo. – Impera a anã Cenoura.

Ao completar a rotação, presenciam de frente o tornado.

– Aquilo é uma força da natureza. – Observa Minarete, o duende místico.

De volta à torre Pai Natal, anão Confete aumenta o foco de seu binóculo e pressiona novamente o painel.

“Quero avisar/
Há esta hora/
Melhor acordar/
Aquela coisa tem braços e pernas/
Como pôde nos encontrar?”.


Na Maximizada Janela Rotacional, agora lotada, as famílias discutem.

– Está no limite de entrada.

– Confete tem razão. Um intruso.

– Pode estar perdido.

– Ele é grande. Não parece humano.

– Avisem Noel.

Mantú cessa o avanço. Em frente da passagem principal, fecha os olhos e inspira. Do punho direito cresce um chifre espiralado e pontiagudo. Dois braços de neve imediatamente abraçam o extraterrestre. Um extremo frio congela sua pele lisa e prateada. Mantú liquefaz o corpo e entra por inteiro no grande boneco de neve que o ataca. A bola de neve, com ameixas secas no lugar dos olhos e um ramo de cipreste fazendo às vezes de nariz, salpica neve numa tremedeira involuntária. Ressurge o caçador, banhado de água.
O intruso crava o chifre na porta principal que cintila intensamente junto à energia do espiral de osso. A estrutura vai ao chão com um estalo seco, partida ao meio. No Quarto Magno, Papai Noel termina de colar a última placa de madeira no vagão em forma de gôndola de sua miniatura ferroviária. Ele suspira e retira os pequeninos óculos dourados. Na borda da janela embaçada, uma miniatura de boneco de neve derrete em velocidade.

– Quanta maldade! Não é homem, não é mulher. Não é animal. É o mal, é o mal.

Maximizada Janela Rotacional

– Pelos meus minérios! – Exclama o duende Caracoles. – A criatura extinguiu Bruno Floco de Ameixa.

– E invadiu nosso lar! Armem as defesas.

– Não esperava enfrentar inimigos desde os trigêmeos Mathiesen. – Sussurra Honorário Elias, o vovô pigmeu.

Anões. Centenas de anões. Todos correm de um lado ao outro nos grandes corredores do complexo. Num dos galpões, Esmir, o gigante, puxa com esforço a alavanca “Pão de Mel”. Todas as paredes de aço estremecem e o chão de carpete felpudo ondula com vida própria.


– Começou?

– Acione a esteira do galpão Estrela.

– Os brinquedos estão a salvo!

– Bom trabalho, Esmir.

– Debalexa! Organize os menores e leve-os para as Nozes de Marzipan.

– Confete! Acione a oitava faixa do Vesúvio.

A sinfonia de violino intercala gemidos com trovoadas. A luz do complexo em meio tom.

– Sinistro! Há! Boa peça pregará. Boa peça.

– Silêncio Borma. Agora o temos encurralado.

– Temos, é? 
A descida da alavanca “Pão de Mel” muda a estrutura da fabrica. A música horripilante, o chão que ondula e o labirinto de corredores. Tudo feito para proteger os três corações: Sala de Brinquedos, Sala de Cartas, Casa de Sonhos.

– A coisa vem pela espinha principal. Fiquem atentos!

Mantú anda rápido. A ilusão causada pelo movimento do chão não o perturba. Ele ergue a cabeça ao ouvir uma voz de barítono ecoar pelo corredor, vinda com um vento quente.

“Vá embora. Vá embora.”

E o vento quente aumenta a vazão. O caçador rasga como papel a parede à sua direita, com o poderoso chifre.


Sala de Brinquedos


Imóvel por um longo tempo, Mantú observa o setor onde acabara de entrar. As paredes verdes e aveludadas cospem sem parar muitos brinquedos, dos mais variados, em tamanhos e cores diferentes. Ao tocarem o chão, púrpuro e arenoso, as formas se evanescem por completo. Muito acima, o teto dá luz a um dragão verde e reluzente, que ao contrario da infinidade de brinquedos, não desaparece quando chega à altura de Mantú. Ele envolve o corpo esguio do invasor, soltando vapor em sua face. Mantú firma um dos pés na coxa do monstro e impulsiona o corpo pelas suas costas, riscando a carapaça da criatura com o chifre.
A asa esquerda do dragão atinge o ombro esquerdo de Mantú, e este cai de joelhos. O chifre cintila e é cravado na cauda da fera. Das escamas verdes surge um gladiador com o dorso nu e um elmo negro. As asas recrudescem e em seu lugar brotam braços fortes, manejando uma espada e um machado, respectivamente. Mantú enrola-se na capa e vai de encontro à aparição guerreira. O machado trisca o ventre do alvo e a espada trisca o chifre brilhante.

O gladiador chuta o peito de Mantú e retoma a posição ofensiva, bradando a espada de um lado ao outro. Ele arremessa o machado e salta. Mantú rodopia para trás e crava sua arma na nuca do brutamonte. O sangue espirrado toma forma no ar e se agrupa como um cachorro de três cabeças. A pelagem, os dentes e os olhos; o vermelho predomina intensamente. O Cérbero abocanha com três mandíbulas o dorso do caçador. Ele liquidifica o corpo e se emaranha nos pêlos do selvagem animal, que é absorvido por completo e cuspido como uma bola disforme. Mantú retoma seu corpo trincado.

Blocos grandes e coloridos despencam do teto. Caem aumentando a velocidade e suas configurações complexas. Mantú galga os blocos com destreza até a abertura, mas sua perna esquerda não escapa de uma peça dobrada e fica presa entre as figuras. Resvalando no estranho teto, ele retorce o corpo ao sentir labaredas descendo ao seu lado. O fogo fulgura do pescoço incompleto de um quadrúpede branco que desce pela abertura. A mula lustrosa emite um relincho abafado do peito e a ventosa de fogo arde com intensidade. Em seu lombo há um samurai com a cabeça de uma raposa, manejando quatro adagas. Mantú usa o chifre, que rutila inda mais forte que anteriormente e causa uma explosão que o leva para um patamar acima, perpassando a estranha sala e deixando para trás e em pedaços, todas as ameaças.

Sala de Cartas

O antropomorfo usa os sulcos do trançado de sua arma mágica e cura a pele aberta da perna esquerda. Recomposto, ele afunda os dedos na coluna de cera do escuro ambiente onde acabara de se refugiar. Um tacho de fogo é aceso no topo da coluna. Brilha a vela corpulenta que clareia uma esfera bem definida em seu contorno. 

“Oi papai Noel eu tenho oito anos minha mãe pediu pra eu escrever para o senhor. Eu tinha um boneco do vovô me deu, ele fez com o galho da arvore de jabuticaba. E eu perdi ele. Se o senhor puder achar eu queria mostrar pra mamãe. Eu não queria perder o boneco que o vovô deu. O vovô já foi para o céu. Eu sempre me comporto o ano todo, ai nesse ano papai Noel o senhor pode mandar o boneco junto com o carrinho de ferro que o Pedro da escola ganhou do tio dele eu quero um pra brincar junto e com o boneco também. Ta bom? Obrigado papai Noel .
Feliz Natal.
Lucas “

“ Este ano eu vou acordar no natal e ver você papai Noel. Daí não fica com medo por que vai ser eu. E eu quero uma arma igual a que minha mãe mexe no quarto dela. Daí meu pai disse que os vermes do vizinho que fala engraçado não vai nunca atrás de mim. Beijo papai Noel .
Alécio
12, novembro 1972”

“ Pai Natal , boa noite para o senhor. Sei que mora muito longe e é muito frio e eu não quero te aborrecer. Minha irmã ta com muito frio também. A mamãe colocou ela numa caixa. Você pode dar uma coberta pra ela e eu quero uma boneca.
De Ana.”

“São Nicolau, traz tua luz generosa nesta passagem tão bela. Que o amor espalhe sua benção por toda a eternidade. Amém.

Cristina P. Gaudério

1898"


Papai Noel termina de ler a última carta e a joga na imensa pilha ao seu lado. Sua aparência é de um adolescente de cabelos castanhos despenteados. Os olhos estão mareados por conta da difícil leitura das letras miúdas. Ele levanta de cima de um monte desorganizado de envelopes e escorrega para baixo.
A voz de Mantú enlaça a obscura sala:

– Creio poder afirmar, sem arrogância e com a devida humildade, que a minha mensagem e os meus métodos são válidos, em sua essência, para todo o mundo. ¹

A voz de Papai Noel responde em tom maior e apaziguador:

– Em uma vasilha, faça uma bola rasa com cem gramas de farinha de trigo, o fermento e um pouquinho de água. Deixe descansar por quinze minutos. Após o descanso, adicione frutas secas e as uvas e faça uma massa bem macia. Deixe descansar uma vez mais, coberta por um pano. Após este descanso, faça bolas cheias e fofas, coloque em formas e deixe descansar novamente até quase atingir o dobro do tamanho. Após tudo pronto, pegue uma lâmina, faça os cortes em formato de cruz em cima de cada panetone, puxe as abinhas para fora e coloque por cima uma colherinha de manteiga sem sal. Leve para assar em uma forma de papel. Reparta com os amigos. Pois é de amigos que tudo se trata.

Mantú passa os dedos afiados sobre o queixo pontiagudo, ressabiado com o assunto.

– O tumulto é a linguagem daqueles que ninguém entende. Se a história ensina alguma coisa, é que o mal é difícil de vencer, tem uma resistência fanática e jamais cede por vontade própria. ²

Noel altera sua forma humana, de um jovem esbelto, o corpo assume feições de um adulto corpulento; de rosto corado, os olhos verdes e fulgurantes a fitarem com grande luz o impiedoso invasor.


– Misture leite condensado e leite de vaca. Bata na tigela, com um garfo, os ovos de galinha selvagem. Esquente uma panela de ferro cheia com óleo, mas não deixe ficar tão quente. Passe as fatias de pão amanhecido na mistura de leite e depois nos ovos batidos. Frite até dourar de ambos os lados. Passe no açúcar com canela. Agradeça seus pais por tudo que você é e coma com a gula livre de remorsos.

O caçador extraterrestre se atraca a coluna de cera da vela gigante e a derruba em direção as cartas.

– Eu acredito em tudo, até que seja contestado. Assim, eu acredito nas fadas, nos mitos e em dragões. Tudo existe, mesmo se estiver só em sua mente. Quem é que poderá dizer que os sonhos e os pesadelos não são tão reais quanto o aqui e o agora? ³

Papai Noel sopra a ponta em chamas da vela antes dela cair por sobre os papéis amarelados.

– Tempere um gordo Peru com todos os temperos que tiver em seu jardim. Deixe-o, já de véspera, enterrado na neve, de molho nos temperos, virando-o a cada quatro horas. No dia seguinte, prepare o recheio com castanhas portuguesas cozidas, uvas passas, manteiga, farinha, miúdos e recheie o peru. Com cuidado para não encher demais o papo, costurando as cavidades. Prenda as pernas do peru uma na outra, decorando com papel recortado, preso com uma linha. Besunte-o todo com manteiga e o ponha na assadeira, de papo para cima. Cubra todo o peito com fatias de bacon divino. Regue com vinho branco italiano. Cubra com um papel alumínio e leve a assar em forno de lenha. Após uma hora e meia, descubra-o, regue com o caldo da assadeira e volte ao forno ainda coberto. Uma hora depois, descubra-o e deixe até que tome um tom dourado escuro, regando, a cada quinze minutos, com o caldo da assadeira.

Papai Noel retira uma pequena trouxa com Pó Saltitante e a arremessa no chão. Suas botas brilhantes sapateiam e toda a grande barriga de Noel chacoalha de encontro a Mantú. Os dois rolam pelo chão com o impacto. Noel espreme o caçador contra o chão. O corpo cinza derrete no solo de cartas e desaparece. Uma passagem em arco, feita de paçoca, abre-se e do recinto reluz um jogo de cores embaralhadas. As renas gigantes avançam em marcha e são interrompidas pela voz de seu amigo:

– Afastem-se. Está dentro de mim.

Toda a família natalina se reúne na Casa de Sonhos.

– Venha pra cá, Nicolas. – Grita Jenipapo, o duende da Folha.

Casa de Sonhos

Papai Noel retira outra trouxa da cinta e salpica Pirlinpinpin pelo corpo. Sua fisionomia muda diversas vezes. Ora Noel, ora Mantú, ora duende, ora anão. Numa luta solitária de feições retorcidas, ele flutua até a Casa de Sonhos.

– Tranquem a porta! Isso acaba aqui! – Exclama Selanofix, afastando os presentes em um grande circulo.

O chifre no punho de Mantú rasga o peito de Noel e o corpo parasita cambaleia para fora. Papai Noel emana uma luz branca de todo o corpo, recompondo-se por inteiro. Sua mão firme agarra o chifre em espiral.

– Teu pensamento revela o extremo da abominação.

Mantú urra de dor enquanto o chifre vibra com um ruído de pistão vindo de dentro do seu corpo extraterrestre. O punho é destroçado com o nascimento de um crânio comprido. O antebraço é partido ao meio e o corte sobe até o ombro. A forma presa ao chifre revela uma cabeça de cor rosa e olhos de um azul profundo. O sangue negro do caçador jorra sobre Noel. Renasce o unicórnio, abrindo Mantú ao meio.
– Bem vindo à vida. Uma vez mais, magnífico Vurukatte.

Como uma harpa mágica, o unicórnio relincha, inclinando-se em reverência ao Papai Noel.

– Nicolas, encontraram uma nave. – Desabafa Debalexa, esbaforida.

Anões, duendes e gigantes circundam o corpo destroçado de Mantú.

– Chegamos à véspera de Natal, família querida. Empacotem a carcaça da criatura e carreguem meu trenó. Quando eu retornar, exploraremos a nave. Refaçam Bruno Floco de Ameixa e desliguem as armadilhas do castelo. O pior passou. Não me esperem para a ceia. Vou jantar com o Patinha de neve.

Papai Noel retoma sua forma de criança e sai correndo pelos corredores, desejando Feliz Natal a todos que lá se encontram.

¹ Mahatma Gandhi

² Martin Luther King
³ John Lennon

sábado, 11 de dezembro de 2010

A Palma de Torquato


Em 1889, o barão Alvaro Torquato (Campo Boi Mirim) desenvolveu uma dinâmica para escrever com fluidez durante suas crises de depressão. Diante de uma pilha de folhas e com sua pena abastecida com tinta, Alvaro Torquato levantava-se de súbito e passava a bater palmas em um ritmo marcado. Acompanhava a batida com frases cantadas em idioma inexistente. Este procedimento não linear e de livre exercicio imaginativo despertava uma onda de escrita satisfatória diante de seu bloqueio anterior.

As obras de Torquato foram compiladas por José Agrião em 1937.

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O fumo de corda condutor

Costume resgatado por Almeida Moreno no livro Causos Controversos (Editora Cipó).

Os irmãos Botelho Bueno, nos idos de 1950, eram frequentadores assíduos dos saraus na noite paulistana. Em meio a troca cultural, promoviam leituras de mini contos sobre a vida no campo, discorrendo de forma teatral por horas. É sabido que muito do material apresentado não foi escrito previamente e mais da metade ficava por conta do improviso.

O detalhe é que grande parte da narrativa era intervalada e sustentada pelo constante "picotamento" de fumo de corda (adquirido em larga escala no Mercado Central) e posteriormente feito o seu consumo em grandes cachimbos lapidados a mão.

Diz um folhetim de fofocas que os irmãos Botelho Bueno, na falta do fumo de corda, deixavam a qualidade e o ritmo de suas narrativas decair ao ponto de interromperem o exercicio e praguejarem pela falta do fumo como condutor de sua imaginação.

Por conta de incendios, 90% de suas pequenas obras foram perdidas para todo o sempre.

Primeiro a sopa depois a poesia

O poeta Carlos Conselho respondeu em coluna da Mirian Blat no Jornal Dia do Sul (1992)

MB: Carlos, grande parte da tua obra faz alusão ao universo culinário. De onde surge tanto apetite na poesia?

CC: Como sou insone há mais tempo do que gostaria de lembrar, adotei o costume de me entreter com comida na madrugada. Mesmo não sendo algo saudável, acarretou-me um conforto como nenhum outro calmante o fez. Mas não era o suficiente para aplacar a monotonia. Ai entrou a poesia. Portanto vem a ordem: primeiro a sopa, depois a poesia, dai vem o livro e agora é a entrevista.

MB: Sopa? (risos)

CC: Sobretudo em minha gana, sopa!

*

Letras na chuva

Renata Escorpa Nogueira (REN) escreveu, entre 1972 e 1986, 50 romances policiais. Em todas as obras havia uma nota da autora na folha de rosto com os seguintes dizeres:

Escrito nos dias ... do mês ... na chuva.

R.E.N.

Ela conta em sua biografia:

"Ficava em grande espectativa quando amanhecia o céu nublado. As primeiras gotas desciam e lá ia eu, com minha Olivetti, cadeira de plástico e capa de chuva. Claro que tinha todo um aparato de sacolas encapando a máquina e mesmo com cuidado extremo, perdi muitas páginas borradas. A coisa de escrever na chuva deslanchou quando fui acrescentando apetrechos ao redor do meu jardim. Fiz até uma cabaninha para os intervalos. Escrever na chuva foi o meu prazer e minha terapia. Sei que meus detetives não ficaram ensopados para resolver os mais espetáculares casos."

(SARNA, João Andrade. A moça das letras na chuva, São Paulo, 1999, p.32)


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segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cyber Junky Sexy Bar 
apresenta:



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Elas são gemas


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Ano: 2.085

Anel 2 - Zona Amorfa da constelação Andrômeda


Um estrondo repercutiu pela plataforma de pouso. A lataria sucateada da Gertrudes V ralou as placas de titânio do piso até bater na guarita. A aparência rústica da nave se desfez e aos poucos, rangendo e vibrando, Gertrudes V virou do avesso, revelando um contorno polido de aço niquelado. Arnaldo "Tesão" Kass pulou para fora, sacudindo seu macacão ultra selado feito de verbena a 500º graus.

- Chamô, chamô pessoal! Tô na área.

A plataforma superlotada, forrada de estrangeiros, perdia-se em curvas, gritária e pilhas de encomendas, amontoadas de qualquer maneira ao longo do circuito. Kass carimbou o visto de permanência e passou três horas preenchendo um formulário de entrega, perfurando a lâmina de aluminio com um canetão laser.

- Pô bixo, tu tá me dizendo que do Rio até aqui, eu tenho que deixar sinalizadores betas por todo o caminho?

Aquele polvo hominideo encarou Kass com a impaciência de seus vinte olhos obliquos. Ergueu seu tentáculo numero 6, lilás e gosmento e apertou com leveza a nadega dele.

- Ah, seu puto. Toma essa merda de prancheta. Termina você de marcar essa porra. Eu to indo pro bar.

Kass trombou meia duzia de anãs laranjas, esbravejando contra o polvo hominideo, lilás e gosmento, que lá ficou, sorrindo animado. Virou três plataformas à direita do pouso e entrou de uma vez. 

"Bem vindo ao Cyber Junky Sexy Bar. Experimente nossas bebidas. Bem vindo viajante das estrelas."

A voz feminina saiu das duas caixinhas enferrujadas de som, penduradas na porta. Kass puxou um banco para perto do balcão.

- Eae Abecê. Bota duas talagadas de cachaça.

Abecê, o barman, firmou o laço de sua bandana encardida na testa e sorriu. Desarrolhou uma garrafa em forma de azeitona e a encostou no nariz de Kass.

- Deus é mais! Essa veio de onde?

Abecê serviu a dose, tampou a garrafa. Coçou o cotovelo esquerdo e debruçou sobre o balcão.

- Veio de um tal de triangulo com minas.

- Tái, meu velho, um lugar que nunca ouvi dizer.

- Coisa boa, coisa forte, Kass.

- Meu bisavô tomava isso. Meu pai tomava também. Tô tomando por causa disso e também que é coisa brasileira.

- Ah... É, lá da Terra. Isso é.

Kass virou o corpo sobre o banco e olhou o salão. Um neon lilás predominava no ambiente, terminando na borda do balcão.

- Isso aqui, Abecê... Isso aqui está deprimente.

- Estamos de luto.

- Luto? Por causa do Colapso Lizard?

- É, você sabe.

Kass alinhou a barriga no balcão, de frente para Abecê e também debruçou o corpo.

- Hey velho, descola alguma gata exótica?

Abecê abriu a boca com um sorriso de dentes separados. Endireitou o corpo e pegou uma caderneta debaixo do balcão.

- Mas é claro, meu querido. Tudo para um conterrâneo.

Abecê dedilhou as páginas da caderneta com uma expressão séria.

- Kass, vulgo “Tesão”, grande Kass. Meu amigo, dei-me conta de que talvez toda a população de gostosas que operam nesse canto do espaço, está no enterro do Capitão Colapso Lizard.

- Ah... Bela bosta. Pô, cara! Estou subindo nas paredes da minha nave. Arruma qualquer coisa.

- Eu tenho duas coisinhas especiais, cheias de excitação. São irmãs. Inseparáveis. São gemas. Se você gosta desse tipo eu...

- Puta vida! 

Arnaldo “Tesão” Kass ficou de pé e espremeu os dedos no balcão.

- É isso Abecê! Pode marcar,AGORA! Pode cobrar quatro horas. Aí cara... Você é sádico, guardando essa belezocas.

Abecê ergueu as sobrancelhas.

- Olha, Kass, eu raramente as oferto. Quem gosta delas e só vai com elas é mesmo o povo lá de Mirion, cê sabe... Lá do segundo anel de Saturno.

- Oras, aquele bando de casca grossa? Que isso meu amigo, eu vou dar um trato que elas vão se apaixonar então.

Abecê meneou a cabeça e colocou um fone no ouvido.

- Posso marcar então?

- Pode.

Discou um numero de quinze digitos e falou numa lingua cheia de estalos.

- Elas vão estar no cubiculo 12. Só que, daqui duas horas.

- Eu espero bicho. Desce mais cachaça.

Kass bebeu gole por gole, impaciente. A visão, um pouco turva, observava criaturas indo e vindo do Cyber Junk.

- Abecê, de onde são mesmo essas irmãs?

- Organitrom. Longe pacas.

- É aquele planeta que se ergueu chupinhando tudo que era orgânico da terra, menos...

- ... menos os humanos. É esse mesmo, Kass.

- Meu primo já foi fazer entrega lá. Porra, ele vai pirar, quando souber que transei essas gatas.

- Escuta só, os caras de Mirion dizem que é como comer Fugu. Sabe sushi de Fugu?

- Sei. Em exagero, você pode morrer, ou não.

- Mais ou menos isso, Kass.

- Bando de frouxos.

- Eles pagam por quinze minutos, todas às vezes, não mais que isso.

- Danem-se. Dá mais dessa cachaça.

Passadas as horas de espera, Kass levanta desequilibrado, derrubando frascos de solução salinica. Entrega o cartão de debito intergalatico para Abecê e aguarda o registro de seus gastos.

- Cobra o prazer aqui também?

- Claro chapa!

Kass desceu dois lances de escada. A temperatura caiu e as paredes estavam repletas de salamandras da neve. Uma prostituta velha esfregava uma das salamandras entre suas pernas gordas. 

- Que cara é essa, querido? Todo mundo se limpa com o bichinho.

Ele desviou da velha e girou o disco da porta do cubiculo. Uma voz metálica e feminina ecoou no quarto:  

“Bem Vindo ao aposento 12 do Cyber Junky Sexy Bar”.

- Blá, blá, blá... Garotas, o “Tesão” chegou! Garotas?

Kass fechou a porta e uma luz suave e branca preencheu o cubiculo aconchegante. Mergulhou numa cama de couro e desajeitadamente livrou-se da roupa. Do pequeno banheiro, de frente a cama, vazava uma luz pela soleira, entremeada por sombras disformes. Ele ouviu risadas estridentes. Com a visão embaralhada ele acompanhou o lento abrir da porta.

- Pode vir, tá duro já.

Mais risadas. A porta abre. Kass esfrega seus olhos embriagados. Uma claridade amarela invade o cubiculo. Risos. Esfrega os olhos. Duas coisas partem para cama. Mais risos. Esfrega mais os olhos. Duas gosmas amarelas e disformes sobem na cama. Risos. Passa a mão na cara. As gosmas sobem por sua coxa. Quente, muito quente. As gosmas riem. Um cheiro nauseabundo corroe Kass.

Enjôo. Quente, quente. Risos. Gosma na virilha. Uma parte dura da gosma desce a cueca. Quente, muito quente. Enjôo, mistura azeda subindo na goela. Cheiro de ovo. Ovo! Amarelo no peito. Gosma na boca. Suga lingua. Risos. Gemido. Quente, queimando. Queimando. Olho revira. Vontade de gritar. Gozou. Gozou? Ovo.

Quatro horas depois, Abecê enxugava copos com sua própria bandana, enquanto passava um palito de madeira de um lado a outro da boca. A escada em espiral no centro do bar foi deslocada, surgiu uma figura trêmula, desbaratinada.  

- Kass meu querido, gostou das... Nossa mãe do céu... Kass?

O trôpego viajante das estrelas se ajeitou no banco do balcão. Seu corpo fedia e sua pele estava toda queimada. Ele pediu uma agua. Sua voz estava rouca e ressequida.

- Seu grande... Grandessissimo filho da puta!

- Eu avisei, Kass...

- Avisou... Porra nenhuma!

- Claro que avisei. Elas são gemas!

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um corredor abafado anuncia a melancolia do local. Cinco pessoas aguardam para atravessar a porta. Homens de semblante cansado. Roupas empapadas em suor. Dedos nervosos agarrados em revistas sobre temas obscuros. Copos plásticos cheios de água vacilam na mão dos dois últimos da fila.

Horas antes, em uma pequena casa.

Um homem triste coloca uma colher cheia de açúcar numa xícara de café. Sentado diante de uma pequena mesa, cheia de farelos de pão e marcas de copo, Alexandre passa os olhos por cima dos classificados de um jornal antigo. A esposa caminha por detrás dele carregando um bule fumegante e o coloca por cima da mesa. Ela senta em frente ao homem e o observa enquanto passeia a ponta das unhas sobre o pano gasto.

- Será que você não percebe? – A mulher questiona de supetão.

Ele revira os olhos sem levantar a cabeça.

- Até quando a gente vai viver nessa miséria? É incrível sua capacidade de ser inútil. O tempo todo. Será que todos os dias eu tenho que te chacoalhar, te acordar para o mundo?

Inclina a face em direção a mulher, com surpresa.

- Você fica fingindo que procura um emprego, finge que vive bem, finge que liga para mim. Há quanto tempo não fazemos amor?

Treme as mãos enquanto dobra o jornal.

- Me diz... Há quanto tempo? É como dizem as revistas, a culpa é sempre do homem, sempre. Um cozinheiro de merda, sem emprego, sem futuro, desprovido de beleza, de dinheiro, de cérebro. Me diz... Eu tenho mesmo que me acorrentar a você pelo resto da minha vida, até você se tornar um capacho velho?

Alexandre baixa a cabeça em direção a xícara de café. 

- Pensa bem nisso... Pensa se você vai me ver, quando voltar essa noite. Fica olhando pelas ruas, quem sabe você não me vê com um belo vestido, cheia de jóias, me dando bem com um homem de verdade. Olha querido... Propostas, eu tenho certeza que não faltam. Tá bom?

Ele a olha e fez menção de responder, mas é interrompido pelo sermão.

- Vai ficar me olhando com cara de bunda? Seu reprimido... Não é homem nem para me dar uma surra, não é? Seu problema é psiquiátrico, porque não vai se tratar? Já imaginou? Você se cura desse muco ranhoso que te cobre e cai na real... Imagina... Seu meio homem... Você voltando para casa curado, cheio de raiva, me xingando. Gritando o quanto é bom ser homem de verdade, dizendo que eu sou uma ingrata e que passei dos limites, me espancando... Já pensou nisso? Já pensou? Pensou?

O homem esfrega a mão pelo próprio rosto, apertando a face com força. Recolhe o jornal, fica de pé. Observa a face impassível da esposa o encarando.

- E então? - Ela pergunta.

- É mesmo, você tem razão. - Balbucia o homem.

De volta ao corredor frio, por detrás da porta onde homens aguardam por sua vez, há um ambiente sofisticado! Seis mesas arranjadas de maneira geométrica ocupam o salão. Sentados ao redor de cada uma delas, figuras distintas.

Um piano negro é dedilhado com fervor por um senhor de porte majestoso. Na mesa numero 13, chega o casal. Alexandre, empenado em um terno de quinta categoria, incomodado por sua falta de costume com o traje. Os sapatos rangem e comem as meias, parecendo denunciar a presença invasora. A acompanhante, sua esposa, abafa qualquer outra presença, qualquer fato, qualquer adendo.  

- Boa Noite - Diz em tom áspero o maitrê, para em seguida acompanhá-los até a mesa.

Esplendorosa, a mulher brilha em um vestido vermelho sangue, de longa cauda. Um decote ousado no tórax é par de um pronunciado decote na coxa. Lábios carnudos ostentam um vermelho desafiador, conjugados ao vestido. Um cometa ardente é o que acaba de adentrar aquele recinto de cores embaralhadas. Na mesa reservada, no centro do salão e próxima ao piano, Alexandre, desajeitado, sorri ao ver os detalhes dispostos de maneira impecável. Uma toalha vermelho tomate cai pelas bordas da mesa até tocar o chão. Talheres de prata, taças de cristal e no centro, destacado, um vaso recheado com rosas vermelhas.

O pianista parte para um toque intenso, intrometido. O casal se acomoda.

- Um Bloody Mary. Pediu o maltrapilho para a dama de fogo.

- Um Whisky vagabundo.

O pianista diminui o ritmo.

Ela não para de olhar seus olhos. Ele treme. Engole a bebida. Ela devolve a reação com movimentos sensuais, molhando o lábio na bebida picante e avermelhada. Não existe contraste algum, a esposa é o mais puro vermelho. Alexandre afrouxa a gravata. O suor escorre como o de um velho porco. Seus olhos doem.

- Deseja o prato do dia? - O garçom é gentil.

- Sim. É galináceo? - Interroga o homem.

- Creio que desta vez seja.

- Ótimo. - Responde satisfeito. 

- A madame?

- Carne, suculenta. Faça com que ela sofra, como um macho de verdade. - Afirma a dama em vermelho.

Ela come o filé cru! Vermelho lânguido. Passado rapidamente em um fogareiro de chamas altas. Alexandre come ovo cozido, mole por dentro. O piano volta frenético. O cidadão, visivelmente desconfortável, faz menção de levantar-se. A dama de copas derrama sua bebida na mesa. Ele volta a sentar. Descontrolado, tenta absorver o liquido com um guardanapo de pano. Olha ao redor, estarrecido.
Nas outras mesas, cada ocupante entretido com seu pedido. E a dama lhe esclarece:

- Tudo aqui é voce, ainda não percebeu? Olhe em volta.

Em uma mesa, vê a si próprio, massageando um grande peru recém depenado. Cheira a pele arrepiada da ave. Na mesa seguinte, Alexandre aparenta trejeitos afeminados, com um gigantesco guardanapo preso envolta do pescoço, comendo chumaços de pêlo. Por trás, em outra mesa, faz caretas para um prato coberto de matéria putrefata. Na última mesa do salão, Alexandre é um velho, brincando com uma colher e rodopiando-a numa sopa, com uma coleira aveludada no pescoço.

- Você, sempre conformado com o lixo que costuma engolir; saia desse beco escuro da mente, Alexandre. Você, que se conforma em satisfazer seu prazer com carne crua, a enfrentar a carne nua. 

- Sim, sim, sim. Você tem razão. Você tem toda a razão. – Responde Alexandre com a voz surpresa.

O homem de terno abarrotado torna a olhar para a acompanhante. Pálido, as veias no pescoço pulam acintosamente. A dama de copas cospe morangos tenros e grandes por cima da mesa e seus olhos ficam grandes e estáticos. Suas mãos delicadas grudam na toalha vermelho tomate. O vestido adquire vida e enrosca-se com a cauda de tecido da mesa. A esposa sorri. Alexandre expressa desprezo em sua feição. A pele da dama é vermelha, seu rosto é tal qual um rubi e seus olhos lilases. O cabelo emaranha-se com as rosas. É uma paisagem bela e ao mesmo tempo, grotesca. O piano esmiúça. Ela esta lá, congelada em meio à mutação, junto à mesa. Uma peça única.

- A conta senhor

O garçom se afasta. O homem abre a carteira e solta duas notas de cem sobre o prato com restos de comida.

- Boa noite, senhor Alexandre. Espero que tenha gostado.
- Sim, foi surpreendente.

“O bistrô estará de portas abertas”

“ Traga seu próprio galináceo da próxima vez.”

“ Venha morto de preferência senhor. Traga seu caixão”

“ Vista-se como homem na póroxima...”

Uma voz doce interrompe a escuridão:

- Pode abrir os olhos. Já terminamos. 

Uma psicanalista rabisca anotações num caderno pequeno, enquanto Alexandre veste o paletó e se levanta do divã.

- Me vi de muitas formas doutora, sinto-me sujo.

- Para despertar é necessário um lampejo de realidade, a percepção e aceitação de todos os medos e desejos que acumulou em sua existência.

- Minha esposa... Ela estava em minhas viagens.

- Eu percebi.

A doutora lhe entrega um pequeno livro vermelho.

- Este livro?

- “O método de 12 passos”, para transformar a percepção das pessoas. “O método” estabelece parâmetros para a dor da humanidade. Libertar-se da tirania dos desejos é não sofrer mais consigo. Contemplar de maneira desinteressada é puro olhar: O olho claro do mundo.

- Então, livre do desejo, posso fazer coisas que antes não tinha coragem? Posso mudar a realidade?

- Sim, livre do interesse pessoal e do eu individual, pode tocar o eterno que há por trás do transitório e vencer a dor.

Alexandre caminha até a porta, carregando o pequeno livro.

- Até semana que vem doutora. - Saúda com voz diminuta.

- Até, senhor Alexandre. Foi uma ótima primeira experiência.  

Ele deixa a sala, repleta de quadros e objetos disformes que adornam o ambiente sombrio. Atravessa o corredor de ombros encolhidos e cabisbaixo, passando pelos demais na sala de espera. Volta a sua casa apenas quando anoitece. Ao invés de usar a chave, bate com o punho cerrado na porta. Ao se abrir, ele entra sorrindo, um sorriso mórbido que faz a esposa congelar de medo. Algo está diferente naquele homem.

- Voltou – Diz a esposa com uma voz arrastada e rouca. - Onde estava? Conseguiu alguma coisa na rua? Responde seu infeliz, vai continuar me ignorando? Seu frouxo.

Alexandre avança por cima da esposa. Sem tirar os olhos de seu rosto, ele a faz caminhar para trás, em direção a parede.

- Que foi seu frouxo? Resolveu fazer alguma coisa? Saia daqui.

Ele a segura pelas mãos. Empurra a mulher na parede.

- Sim... Eu vou fazer alguma coisa. Sabe... É uma questão de percepção. Você não acha?

- Espera... Espera... Quem você pensa que é?

Alexandre usa as mãos para amassar a face pálida na parede fria.

- Eu sou a realidade, querida! E você... Você é só mobília!

Alexandre dorme no sofá enrolado com um velho cobertor. Na parede de trás, sua esposa, pintada com tinta a óleo, presa em um quadro. O rosto pincelado expressa grande pavor. Eternizada, adorna a pequena e confortável sala.


 ***


 

sábado, 16 de outubro de 2010


A cara da cadeira risonha muda de cadeira em cadeira.

O cara que senta na cara da cadeira risonha, carece de carimbos para carimbar a cadeira careta.

A cara da cadeira careta muda de cadeira em cadeira.

A cara do cara que senta na cadeira careta é justamente a de quem carece de carimbo!



quinta-feira, 14 de outubro de 2010


Terra
preta
terra
barro
terra
areia
terra
mato

terra
velha
terra
nova
terra
plana
terra
cova

terra
pisa
terra
deita
terra
dorme
terra
cheira
-
Preta
velha
pisa
barro
cova
plana
cheira
mato
dorme
deita
areia
nova
terra
berra
se
renova.

Pronto! 

Num piscar de olhos, estava tudo acabado. O coração havia se partido. Nada mais poderia ser feito. Tentou seu ultimo esforço em vão.

O amor fulminante voltou.

Enganou o coração, laçando-o numa armadilha vil.

Apesar de tudo, uma vez mais, as coisas fluíam bem. O organismo funcionava em perfeita ordem. Olhos alertas, suor sobre controle, rins em perfeito funcionamento. Estômago com fibra.

O coração tranqüilo não esperava seu mal, bombeando num ritmo acalentado todo aquele sangue.

Sentimento por vezes cruel e ordinário, vilão arrogante e ciumento, o  vazio. Estar vazio. Sentir-se só.

A nulidade, na primeira oportunidade, abriu as portas. Sua entrada é o que provocou todos os problemas.

O amor forte e fatal no incansável coração.

A boca secou de súbito. O suor empapou a testa. Os nervos, de todo aquele imenso organismo, tilintaram. Pane cerebral, nenhum órgão sabia como se portar. Devastador, oportunista.

Mais um dos picos, a velha tática. Num momento tudo muito bom e noutro momento tudo muito ruim.

O coração estava acabado?

Restavam os amigos. Pulmões sentimentais o trouxeram a novos ares. Uma lufada de ar e toda calma voltava a se instalar. 

... Novamente um pico


Tudo morto, nada mais funcionava, de mal a pior. Quase o fim, pois faltava um que ainda lutava.

Não resistiu. 

O coração partiu, levou corpo e alma. Os olhos nada enxergavam. O que aconteceu? Tudo morto.

O amor
fulminante
voltou.

...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

EXPRESSO VIDA

 21 de Outubro de 2013 / Edição numero 01


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
É com uma felicidade esperançosa que chegamos até suas mãos com as visões do estado das coisas. Desculpamo-nos de antemão, pela cópia deformada da tipografia e da qualidade deste pedaço de papel. É importante que mantenhamos este meio de comunicação para gravar os fatos advindos das além fronteiras. Não somos exímios jornalistas, somos sobreviventes como vocês. E tão rápido nos recuperarmos do baque catastrófico que ocorreu ao planeta, nos agruparemos em posição privilegiada.
De nosso observatório temos um panorama vital do restante da civilização. Nossa matéria prima é escassa e dividida para quatro direções, norte, sul, leste e oeste. Rogo para que transmitam as informações aqui contidas ao máximo de irmãos. É de suma importância manter os registros, para que venhamos a reerguer uma nação humana e decente.
Quem lhes carrega tão precioso conteúdo é o Mensageiro. Temos dez mensageiros voluntários, que percorrem o árduo trajeto por entre escombros de perigos mil. Cada um deles tem uma numeração pintada em sua roupa. Tratem com zelo o jornal e seu Mensageiro. Somos todos batalhadores e ainda mais o é este andarilho, que em sua pressa lhes deixou uma cópia do Expresso Vida. Aqui onde estamos, somos vinte homens e cinco mulheres. Informem o Mensageiro da quantidade de sobreviventes que formam seus grupos. A nossa união é vital. Este é o primeiro marco. Marquem esta data.

Abraços confortantes

Senhor Vida


DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE

Lembro com temor da fatídica tarde, as vésperas de entrarmos em 2012. Aguardava os familiares chegarem ao meu lar para iniciar os festejos fartos, de refeições gulosas e bebidas confortantes. Uma onda empolgada de vida, com muitas promessas e premissas para o ano vindouro. Eu bem sei que ninguém teria previsto de tal forma aquele som tenebroso. Afinal, o que tinham de tecnologia os governos da terra para, tal como em filmes, saber com antecedência do risco iminente? Nada, somente uma estufada ostentação de um conhecimento arcaico. Mesmo que inevitável, merecíamos um aviso, uma palavra de conforto.
Eu já fui racional o suficiente para desprezar a vidência, o ato profeta, o misticismo interesseiro. Mas é de cair o queixo de um cético. Foi de cair para mim. Naquela tarde, começou uma sincronia horrenda de eventos. A campainha ressoou aguda e ao mesmo tempo um zunido inda mais estridente a abafou e as janelas tremeram. Eu pensei: “O que diabos estão fazendo os vizinhos?”. Corri à porta, que estava sendo socada por algum parente em súbito desespero e foi tão simples o ato de abrir e só ter poucos segundos para olhar minha tia esbaforida. Atrás dela a sombra do universo, tão veloz que tirou a reação de todos. Foi um baque distante de nós. O suficiente para soterrar meu lar e de todos vocês, eu creio. Como retirar as lembranças de minha mente? Um observador lesado pelo objeto de estudo, preferiria ter morrido com as massas. Deus colocou a mão em forma de concha sobre meu corpo e intacto eu caminhei pelo vale das sombras.

Meus amigos, nós temos pouco espaço e muito a oferecer. Na próxima leva de registros continuarei meu relato. Um sobrevivente como vocês. Será que olhamos para as mesmas coisas?

Santo Geraldo


A SAUDE É O CAMINHO

Conselhos importantes de um médico

Queridos, assumi um compromisso de vida para com a vida de meus semelhantes. E mesmo na intempérie do fim do mundo como o conhecíamos, reúno minhas forças para que possamos enfrentar as adversidades e salvaguardar o bem precioso da vida. É notável a extrema poluição causada por elementos componentes de nossa superfície terrestre. A poeira, que cobre parcialmente nosso alcance de visão, irá se assentar com o passar do tempo, é o meu palpite. O caso é que não temos tempo para esperar. Problemas básicos irão acometer nossos “cascos”. 
Visão turva, conjuntivite, alergias na pele, garganta ressequida, febre, desidratação, complicações respiratórias, asma, convulsões e um sem fim de pequenos colapsos. Tenham, acima de tudo, otimismo. É de primeira ordem a necessidade de hidratar o corpo. Há muita água ainda disponível, pelo menos aqui, conseguimos coletar um volume considerável. Limpem a pele, organizem seu abrigo. Não permitam o acumulo da sujeira. Sei que é difícil o momento, mas sabemos o quão importante é mantermos um ambiente saudável. Em próxima oportunidade falarei sobre a filtragem do ar. Se houver médicos entre vocês, gostaria de saber.

Doutor Marcus Genoveva Siqueira 


COMIDA E ABRIGO

Juntos, vamos conseguir.
 Cobertores, colchões, travesseiros. Arroz, feijão e farinha. É mais do que o ouro e a prata já foram. Sejam, acima de tudo, solidários com o próximo. Esqueçam a palavra monetária. Não façam com que itens básicos virem moeda de troca. Não quero acreditar que ainda reste a mesquinhez do ego em um tempo bravo como este. Ponderem e sobrevivam.

Graciela Ramos 


UM GOVERNO, UMA NAÇÃO

É disso o que precisamos. Todos de acordo? Não sei, mas aqui entre nós, os novos comunicadores, somos a favor de uma rédea racional para guiar a sociedade. Particularmente, creio que a democracia não será a melhor saída. A verdade é que, num primeiro olhar, constata-se tristemente que a humanidade está à beira da extinção. Necessitamos de um líder nato, conhecedor, centrado, justo. Sou esta pessoa. Acreditem em minha pericia. Tenho 45 anos, vinte e três deles dedicados ao exercito, sou um sobrevivente de grandes habilidades e espero alavancar uma nova lei de convívio. É uma honra.

Saudações incomensuráveis, colegas.

Agente Vermelho



NOVO MUNDO

Não sabemos ao certo a periodicidade destes escritos. Queremos espalhar o bem maior, deixando o máximo de pessoas informadas e com uma visão ampla do que está acontecendo. Cuidem dos mensageiros. Eles têm três dias de descanso e sete dias de longo trajeto para ir e vir. Tenham fé.

Abraços confortantes

Senhor Vida.



EXPRESSO VIDA

 12 de Novembro de 2013 / Edição numero 02


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
Bravos senhores, senhoras e crianças. Nossa demora provocou grande ansiedade e preocupação, acredito. Novamente noticias do fim do mundo chegam até suas mãos. Espero que estejam bem. As folhas que seguem, estão em parte queimadas, amarrotadas, amareladas, esburacadas e com considerações finais escritas em tecido. Estamos fazendo o possível, de todo o coração. Nossos mensageiros voltaram à base, sãos e salvos. Viva! Temos números confortantes para vocês. Segundo uma contagem superficial, dentre todos os agrupamentos encontrados nas direções percorridas, somos quase novecentos ao todo. Médicos, engenheiros, advogados, escritores, donas de casa, comerciantes, autônomos, soldados, policiais, esportistas, crianças e segue uma lista imensa de funções diversas.
Que grande alegria saber das crianças. Nosso futuro ainda será vasto, meus caros. Temos uma região com um lago, vejam só que impressionante. A água é turva, mas consumível. Quem está em falta de mantimentos deve seguir para o oeste, perto do meteoro em forma esférica. Creio que todos podem ver este intruso espacial, grande como uma montanha. É lá que sobreviventes se agruparam em torno do lago. A depressão da terra, certamente abriu algum veio subterrâneo para esta água abençoada. É um prazer narrar às boas-novas.

Abraços confortantes

Senhor Vida



DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE

Choros e uivos guiaram meu caminho. Eram tantos os restos de corpos, que tal visão não mais incomodava os olhos. E o cheiro acre não podia ser evitado, era o menor dos problemas. O terremoto durou quatro meses, sem maiores estragos do que os feitos pelas grandes montanhas que caíram do céu. Os dinossauros certamente passaram por algo semelhante. Estarrecido, passei por um sem fim de rochas negras.
Toquei-as e rastejei por galerias, geladas e amedrontadoras. Não compreendo por que têm formas geométricas perfeitas, aparentemente. Alguém que me lê, deve ter se deparado com o monólito em forma de pirâmide. De que canto da galáxia se desprendeu tal aberração? Nós que escrevemos neste dito jornal, estamos refugiados sobre uma destas rochas espaciais. Com a dissipação inesperada do pó, vemos com clareza, ao leste, uma formação de monólitos retangulares, cravados em meia lua por quilômetros. Existe uma lógica, um plano em tudo isso? Já não me preocupa a presença destas pedras. Preocupa-me mais a mancha escura pairando estática acima de nossas cabeças. Daqui do alto, ouvimos um rugido. Trovões? Chuva? Aguardemos.

Santo Geraldo


A SAUDE É O CAMINHO

Conselhos importantes de um médico

Queridos, muitas questões retornaram com os mensageiros. Em especial, chamou-me a atenção o caso da senhora Jussara da “comunidade” Coração de Deus, no extremo sul. Pela descrição do Mensageiro numero 7, a senhora apresenta sintomas de uma infecção bacteriana, talvez. Entenda, é difícil um diagnóstico à distância, mas no “apocalipse” ele é necessário. Conte-me sobre a evolução da enfermidade através do Mensageiro numero 7.

Vamos falar da filtragem de ar. Como previ, muitos estão com complicações respiratórias. Ardência ao respirar é um sintoma preocupante. Se não podem se locomover do local, utilizem panos úmidos no ambiente. Costurem lençóis velhos e os usem como cortina. Sei que a água fará falta, mas com aplicação ponderada, todos usufruirão da boa saúde até que as coisas melhorem. A qualidade do ar já está melhorando, vemos os primeiros raios solares atravessando as nuvens. Esperança, meu povo. Há uma chance de vegetação, pelo menos é o que podemos ver daqui do alto.

Doutor Marcus Genoveva Siqueira 


OREMOS

A fé em Deus é fruto colhido nesta jornada de provação. Lembre-se de Deus, não importa qual for a sua religião. Não deixe a blasfêmia do diabo subjugar teu coração.

“Direi do Senhor: Ele é o meu refúgio e a minha fortaleza, o meu Deus, em quem confio. Salmo 91-2”

Ana Maria Rosa



HUMOR É VIDA

Até no fim, vale um sorriso


Por que os peixes comem muito?
Porque eles estão sempre com água na boca!
Ai, ai. Estou louco pra conhecer este lago,
do qual os mensageiros falam a respeito.
Quem imaginaria?
O fim do mundo combina com pescaria!


Beijos, lindinhos. 

Osmar Telada


UM GOVERNO, UMA NAÇÃO

Respeito é uma atitude do humano consciente. Espero ganhar o seu, meu caro sobrevivente e amigo. Estamos trabalhando na reconstrução de nosso mundo. O pesadelo está a quilômetros de distância. Enquanto isso nós tocamos a vida, preparados para um novo ataque. Não podemos fugir de uma pedra que cai do céu, mas podemos lutar contra quem jogou esta pedra. Força! Somos a resistência. O grito maior será o nosso. Comigo na força fronteiriça. Olhem os céus, aquela mancha é o inimigo.
 Saudações incomensuráveis, colegas. 

Agente Vermelho


NOVO MUNDO

Esperamos mais relatos de vocês sobreviventes, para rechear a próxima edição.

Abraços confortantes

Senhor Vida


EXPRESSO VIDA

 05 de Março de 2014 / Edição numero 03


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
Estou impressionado com as reclamações a respeito de nossos esforços. Tenho que discordar das opiniões dos desgostosos. Criticas sobre a inutilidade das matérias? Acham que é fácil escrever sobre intenso temor, engolfando as lembranças dos familiares mortos e ainda buscando a própria sobrevivência? Não discutirei sobre as mensagens recebidas, pois sei que é a minoria. Somente respondo que as utilizações de um rádio, como bem indagaram, não está nos planos e nem nas possibilidades precárias. A voz é efêmera, a escrita eterna.
Destaco, pois, o milagre que é saber que temos ainda vegetação nos quatro pontos cardeais. E ainda, agradeço o envio dos tubérculos. Viva. Que a vegetação se torne...

Uma doença contagiante

Senhor Vida


DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE
Antes das coisas melhorarem, elas certamente estão piorando. A mancha, a sombra que estava engolfada nas nuvens espessas desceu e mostrou a face repugnante, como podem observar. Estamos diante de uma invasão alienígena? Proteja-nos bom Deus. Uma serpente com nervos desceu entre os monólitos. Sua extensão e largura parecem inconcebíveis. O rugido aumenta no ar. Estamos apreensivos, pois as rochas geométricas abriram comportas. Delas saem grandes maquinas com canos apontados para o alto. Não vemos o que, ou quem, as pilota. Mas temos medo.

Espalhou-se.

Santo Geraldo


A SAUDE É O CAMINHO

Conselhos importantes de um médico

Abram os olhos. Seja lá o que for, está nos destruindo. Os mensageiros bem sabem. Questionem o raciocínio deles. Faleceu a senhora Jussara. Doença contagiante. Cuidado.

Matem:

Doutor Marcus Genoveva Siqueira


UM GOVERNO, UMA NAÇÃO

Parto para a batalha. Agora sabemos que existem criaturas no interior das rochas. As cidades dizimadas são receptáculos da ameaça. Junto de voluntários do leste, averiguarei o que são de fato. Confie em mim cidadão, seu líder.
 Saudações incomensuráveis, colegas. 

O vetor da doença

Agente Vermelho



HUMOR É VIDA

Até no fim, vale um sorriso
 
Eles me proibiram de fazer piada com a nossa situação. Mas oras, o melhor é rir da própria desgraça. Estou agora a observar um verdadeiro pênis extraterrestre descendo das nuvens. Rir ou chorar? Eis a questão. 


É o Mensageiro 

Beijos, lindinhos.

Osmar Telada




NOVO MUNDO

As entrelinhas do destino, meus amigos. É fundamental. O ataque vem das ameaças externas e dos compatriotas, infelizmente, tombados na loucura da enfermidade.

Numero 07

Senhor Vida


EXPRESSO VIDA

?/ Janeiro de 2015 / Edição numero 04


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
A situação fugiu do nosso controle. Perdoem o vazio que deixamos sem um novo boletim. Doutor Marcus Genoveva Siqueira faleceu vitima de uma doença terrível, há quatro meses. Desconhecemos a causa, sabemos apenas de seu alto contagio. O pandemônio instaurou-se quando notamos os sintomas no Mensageiro numero 07. Sua fuga da quarentena deixou-nos ressabiados e temerosos quanto ao restante da população. Inserimos uma mensagem codificada na última edição e soltamos a mesma aos quatro cantos, na esperança de que alguém exterminasse a ameaça, escondida em algum lugar.
Infelizmente, não iremos continuar a distribuir estes escritos. Seis mensageiros não retornaram da jornada anterior. Não posso afirmar a morte do vetor da doença. Além do bom doutor, mais três amigos faleceram em dor, provavelmente contaminados. O Agente Vermelho não envia mensagens de seu avanço e Santo Geraldo permanece isolado em tal loucura, que temo por minha segurança. Recebi um binóculo encontrado pelo Mensageiro numero 3. Observo pontos de iluminação artificial, serão geradores? Vou rumar ao norte. Dois mensageiros se encarregaram da entrega deste ultimo informe. Cuidado com o leste, como devem também poder ver, surgiram fachos cintilantes, farpas de fogo saindo de maquinas estranhas, parecidas com canhões apontados ao céu. Certamente é uma nave de dimensões dantescas pairando como um alvo primordial dos projeteis. Não pagarei para conhecer esta guerra.

Serei mais útil no caminho. Generosamente lhes aviso: avistei vacas (bezerros?) ao norte. Esperança é uma palavra recorrente nestes tempos. Ela ficou colorida com a visão dos animais. A mãe natureza segue seu curso. Parto com vontade de conhecer vocês, amigos leitores. Fiquem em paz. Em breve os alcançarei.

Abraços confortantes

Senhor Vida.


“Lindo meu amor. Continue girando, isso, suavemente. Que sol lindo esta por trás de ti. Continue rodando”.

Sandro Menetti está na tomada final de seu curta-metragem. Sua moderna câmera digital capta movimentos ensaiados de Mariana, a musa inspiradora.

“Dê vida à personagem, minha linda. Deixe esvoaçar seu vestido”.

Em uma tomada de câmera debaixo para cima, Sandro Menetti sente o baque seco na cabeça. Sua espinha treme e a visão começa a escurecer. A musa grita e ele a observa pela câmera, numa imagem turva entremeada pela ponta de seus dedos.

“Ah, mas que êxtase na maravilhosa Mariana”.

- Solta logo essa merda, caralho!

Jubilo Demotape corre. Corre deslumbrado com o fruto de seu roubo. Está muito chapado para desviar da musa aterrorizada e a derruba violentamente no asfalto. Ele cruza o parque com a câmera ligada...

Nós vamos com ele. 

VINTEQUATROHORAS
ININTERRUPTAS 
DEDROGAS

QUEM É O CARA?

Jubilo Demotape é a pária do subúrbio. Aos dezoito anos, declarou-se filho legitimo do underground. Freqüentador de festas pervertidas, no centro velho da cidade. Casas de swingue, labirintos homossexuais, raves regadas a LSD, Heroína e maconha. Aos vinte anos conheceu um franco-português mais pirado que ele. Beni Chermont, anarquista burguês, bicho-grilo de universidade publica, filósofo recalcitrante.

- Que puta festa! Que som do caralho é esse?

-  A massage to your brain.

Jubilo tornara-se fanático pelas batidas eletrônicas e aceleradas. Dançava freneticamente. O corpo balançava de um lado ao outro, trombando nas pessoas e objetos ao redor. Não tinha pai, nem mãe. Não tinha parentes, não tinha casa. Vivia de pequenos furtos. Ele não tinha ambição, não tinha inteligência... E continua não tendo.

LENTE OBJETIVA

Jubilo corre. Encosta o visor da câmera no olho direito e continua a descarrilar. A imagem tremida retrata os transeuntes, os carros, a fumaça e na maior parte do tempo o chão. Pequeninos picotes de grama esvoaçando, purê de cachorro quente, jornal amarelado, chiclete rosa, chiclete verde, chiclete cinza. Bosta de cachorro, corrosivo rastro de pombo. Ponta dos pés, sarjeta, asfalto, calçada, sarjeta, asfalto, grama, grama, grama.

- Toma no cu filho da puta. Vêm comigo assistir meu curta. Curta do caralho.

Algodão doce, garota assustada, óculos de sol. Cooper de sunga, raquete de tênis, fonte, arvore. Grama, grama, grama. Jubilo Demotape urina no banheiro publico, na parede do lado de fora, tentando enquadrar a cabeça de seu pênis com a câmera.

- Ei desgraçado, para com essa merda. Filho da puta.

- Vai se fuder! 

Jubilo recomeça a corrida, filmando o velho que está lhe xingando. Corre com as calças ainda arriadas nas coxas. O visor no olho direito. Salivando, resmungando, tremelicando.
As imagens são indefinidas, vultos coloridos e trêmulos. Jubilo contorna a fonte e derruba com o ombro esquerdo um carrinho de pipoca.

- Vai ficar foda o meu curta. Vai ficar cavalar!

Grama, sarjeta, portão, asfalto. Sarjeta, calçada, chiclete, poeira, papel, comida, baratas, muitas baratas.

Ele entra em um bueiro semi-aberto nos fundos de um conjunto habitacional. Caminha no lodo sujo e fétido até um cubículo no fim de uma das ramificações do esgoto. Lampiões dão luz àquele local sombrio. Mais duas pessoas estão sentadas em caixotes de verdura.

A COLEÇÃO DE DROGAS DO TEX

-Demorou, ô cusão.

-Vão se fuder. Consegui a porra de uma câmera.

-Se a gente morrer, vai estar tudo documentado.

Os três ajeitaram-se envolta da mesa de tijolos e Tex abriu um saco de lixo, despejando seu conteúdo na superfície.

-Porra, Tex. Tem um braço do lado da sua perna. Que caralho é esse?

A luz do lampião rebate um corpo putrefato, espremido no canto do cubículo. Metade da carcaça esta afundada na lama, coberta de pequenos ratos, passeando e mordiscando a carne.

- Se liga, Jubilo. Esse é o meu irmão. Ele veio há três dias aplicar uma dose e capotou aqui no chão. 

-Puta merda que massa. Espero ficar assim, sinistrão.

Jubilo Demotape aproxima a câmera até o cadáver do irmão de Tex, cutucando os ratos com a bota.

-Senta ai, porra!

-Senhores. Prontos?

-Manda bala. O que vai ser primeiro?

Tex Boniclaide é o fármaco da galera. Debaixo de seus blusões de tricô, sempre um tubo de entorpecente, uma bucha de intoxicação. Loucura a pronta entrega. Sem custos, só pela amizade, pelo acesso fácil, pelo reconhecimento.

-Estimulo, depressão, alucinação, perturbação. Vamos endoidar.

Valium com cerveja. Lexotan com água mineral. Heroína na veia. Metanfetamina goela abaixo, na seca. Cocaína na fungada, esfrega na gengiva. Haxixe e fumaça. Quadradinho de LSD, debaixo da língua. Mescalina em conta gotas. Ecstasy e pirulito. Litro de vodka sem gelo. Água mineral, água, água.

COMPORTAMENTAL

Beni ergue a cabeça e assopra para o alto. Tex senta sobre o cadáver do irmão e Jubilo dança sua musica eletrônica imaginaria, agitando energicamente braços e pernas. O que um médico chamaria de quadro clinico, eles chamam de experimento. Náuseas e tremores acompanham o suor abundante que escorre dos corpos. O pequeno beco de esgoto gira lentamente. A atenção ao que acontece é reduzida e a agressividade toma conta do olhar de cada um.

JUBILO

Esmurra as paredes e sorri por não sentir dor, por ter uma força extrema.

TEX

Experimenta uma sensação de leveza e prazer. É um homem poderoso e influente.

BENI

Suas roupas, do século XVIII, estão perfumadas. Cortesãs disputam seu colo. 

JUBILO

Aperta com força a câmera em uma das mãos. As ascensões descarregam energia na muralha de Berlim onde tanto sonha em ir.

BENI

Dá voltas pelos parques imperiais da china, esperando ser reconhecido pelos pombos como um nobre francês.

TEX
Apalpa as pernas de seu irmão morto, mas este reclama das mãos ásperas. Vomita diversas pedras de diamante esperando que o morto o perdoe por suas faltas.

JUBILO
- Parece metal retorcido que escorre pelas veias, que me impede de passar. Essa força magnífica, flui com fel pelo caminho. Este alfabeto estúpido, entupido, que me impede de passar, me impede de passar, me... passar... A substancia misturada preenchia as mentes, delírio vai, perturbação e confusão. O ar viciado esmagavas, esmagavas. Alfabeto estúpido, entupido, que me impede de passar, me impede de passar.

.

FUGA

Correndo com sangue nas mãos, sangue na câmera, sangue nas roupas. Na cidade já escura. Jubilo Demotape ergue aos céus a cabeça de Tex. Filma em círculos a paisagem misógina daquele borrão deserto. Canta insultos, relembrando as batidas que tanto o completam de energia. Em sua cabeça, mil imagens do ontem e do amanhã. Não pode elucidar o que esta fazendo agora. A sua frente, cenas rápidas de Beni nu, mastigando cabeças de pombas e tijolos. Sangrando, com seus braços no estomago aberto, volvendo tijolos picados. Tex cavando o corpo do irmão, trocando de pele, trocando de lugar.
Jubilo está com o rosto branco de cocaína e corre mais pela noite. Gritando e filmando a cidade e suas visões. Ele pára seus passos para escutar as batidas violentas do coração. Olha abismado para o próprio peito. Há um buraco vazio por onde o vento passa assoviando. Dá voltas sem sentido pelo quarteirão. Os prédios estão mais altos do que o costume. Os becos mais claros e menos sujos. 

- Lá está o delinqüente.

A esguia forma humana contrasta com a parede de cartazes caóticos. No olho esquerdo uma câmera aponta para Sandro Menetti e na mão direita uma cabeça retorcida e ensangüentada pende horrivelmente. Os músculos tensos. Não há respiração, não há nada. O jovem diretor arrepende-se de ter chamado atenção daquele ser. A musa se esconde tremula por trás de Sandro. Os assistentes de produção estão reunidos em volta do diretor e apesar do numero superior, a visão do absurdo surreal de Jubilo, impede qualquer reação.
E o corpo medonho tomba rígido no meio-fio. E a madrugada acolhe mais uma alma perturbada. Jubilo Demotape não consegue retirar a membrana gosmenta que lhe envolve. O corpo é de gelatina, um choro compulsivo ataca. Num mundo desconfigurado, sem drogas, sem musica, sem nada que valha a pena contestar. Jubilo entrega, com a mão esticada no asfalto, uma câmera rachada, ensangüentada e com a bateria fraca.

***

Rolam os créditos finais na grande tela. O público aplaude com vacilo.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Sigo pela estrada digital neste trem feito de conexões. Leio folhetos de cultura inútil.

Chego ao meu destino, abro uma porta que não é porta, que não está lá. Sou atendido e atentado pelo Mc Terrorista. Compro espaço na mídia e lá passo a viver.

Com um sinal fraco envio votos de compaixão a todas as pessoas desconectadas; mas elas não retornam a mensagem.

Estou cercado por baterias descartadas da matriz, entre projetos espaciais e patrocínios da hipocrisia.

Munido de livre arbítrio, não posso aprofundar a percepção do homem doxa, habitante e freqüentador do meio eletrônico primário.

Estou apto, graças à permissão da pirâmide planetária, a veicular em todo globo, qualquer globo, a inconsciência programada, bombardeada de mentiras.

Sublinho a subliminar proposta, aprovada pelo protagonista da festa do refestelar.

Aguardo uma conexão mais rápida, pois já se esvai a fumaça branca, do tiro que saiu pela culatra.

sábado, 18 de setembro de 2010



As estrelas cadentes mergulham no infinito. Suas mãos tremem.

O sonhador se envolve nos tecidos. O dia mais esperado torna-se um fruto colhido.

O toque é macio e percorre a longa cauda. A escolha prazerosa paralisa o tempo. O campo de flores aveludadas é colhido, para dar passagem ao empelicado. Mais uma estrela deixa sua cauda soltar o brilho pelo tempo.

“Quais são as chances?”. Repete um pensamento solto no boneco.
Repleto de desejos enternecidos, que transpassam o tecido. Perfaz-se a perfeição de uma realeza infinita. Olhos lânguidos tocam as vitrines e adquirem uma aparência brilhosa, profunda. Uma visão que entrega torpor e é poderosa atração, que alvoroça a alma de andar delicado.

A cidade cinzenta em um conto de fadas. Está na rua das noivas, como um passageiro de sonhos castos. Entre todos os corpos sem vida nas vitrines, ansiando pela mesma chance. Entre todas as outras coisas, um entregará seus trajes ao ápice do desejo.
Desce o manequim do pedestal. Trôpego, febril. Palpita algo na caixa em seu peito. “Que é minha forma? Sou um amorfo?”.  Apalpa a tez rigida. Respira. O ato faz soprar de cada junta uma morna bruma. Os olhos borbulham. O plástico salga. É sua quarta vestimenta.

Este é o jubileu do manequim.

É o dia mais esperado na rua das noivas.
 

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