sábado, 16 de outubro de 2010


A cara da cadeira risonha muda de cadeira em cadeira.

O cara que senta na cara da cadeira risonha, carece de carimbos para carimbar a cadeira careta.

A cara da cadeira careta muda de cadeira em cadeira.

A cara do cara que senta na cadeira careta é justamente a de quem carece de carimbo!



quinta-feira, 14 de outubro de 2010


Terra
preta
terra
barro
terra
areia
terra
mato

terra
velha
terra
nova
terra
plana
terra
cova

terra
pisa
terra
deita
terra
dorme
terra
cheira
-
Preta
velha
pisa
barro
cova
plana
cheira
mato
dorme
deita
areia
nova
terra
berra
se
renova.

Pronto! 

Num piscar de olhos, estava tudo acabado. O coração havia se partido. Nada mais poderia ser feito. Tentou seu ultimo esforço em vão.

O amor fulminante voltou.

Enganou o coração, laçando-o numa armadilha vil.

Apesar de tudo, uma vez mais, as coisas fluíam bem. O organismo funcionava em perfeita ordem. Olhos alertas, suor sobre controle, rins em perfeito funcionamento. Estômago com fibra.

O coração tranqüilo não esperava seu mal, bombeando num ritmo acalentado todo aquele sangue.

Sentimento por vezes cruel e ordinário, vilão arrogante e ciumento, o  vazio. Estar vazio. Sentir-se só.

A nulidade, na primeira oportunidade, abriu as portas. Sua entrada é o que provocou todos os problemas.

O amor forte e fatal no incansável coração.

A boca secou de súbito. O suor empapou a testa. Os nervos, de todo aquele imenso organismo, tilintaram. Pane cerebral, nenhum órgão sabia como se portar. Devastador, oportunista.

Mais um dos picos, a velha tática. Num momento tudo muito bom e noutro momento tudo muito ruim.

O coração estava acabado?

Restavam os amigos. Pulmões sentimentais o trouxeram a novos ares. Uma lufada de ar e toda calma voltava a se instalar. 

... Novamente um pico


Tudo morto, nada mais funcionava, de mal a pior. Quase o fim, pois faltava um que ainda lutava.

Não resistiu. 

O coração partiu, levou corpo e alma. Os olhos nada enxergavam. O que aconteceu? Tudo morto.

O amor
fulminante
voltou.

...

terça-feira, 5 de outubro de 2010

EXPRESSO VIDA

 21 de Outubro de 2013 / Edição numero 01


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
É com uma felicidade esperançosa que chegamos até suas mãos com as visões do estado das coisas. Desculpamo-nos de antemão, pela cópia deformada da tipografia e da qualidade deste pedaço de papel. É importante que mantenhamos este meio de comunicação para gravar os fatos advindos das além fronteiras. Não somos exímios jornalistas, somos sobreviventes como vocês. E tão rápido nos recuperarmos do baque catastrófico que ocorreu ao planeta, nos agruparemos em posição privilegiada.
De nosso observatório temos um panorama vital do restante da civilização. Nossa matéria prima é escassa e dividida para quatro direções, norte, sul, leste e oeste. Rogo para que transmitam as informações aqui contidas ao máximo de irmãos. É de suma importância manter os registros, para que venhamos a reerguer uma nação humana e decente.
Quem lhes carrega tão precioso conteúdo é o Mensageiro. Temos dez mensageiros voluntários, que percorrem o árduo trajeto por entre escombros de perigos mil. Cada um deles tem uma numeração pintada em sua roupa. Tratem com zelo o jornal e seu Mensageiro. Somos todos batalhadores e ainda mais o é este andarilho, que em sua pressa lhes deixou uma cópia do Expresso Vida. Aqui onde estamos, somos vinte homens e cinco mulheres. Informem o Mensageiro da quantidade de sobreviventes que formam seus grupos. A nossa união é vital. Este é o primeiro marco. Marquem esta data.

Abraços confortantes

Senhor Vida


DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE

Lembro com temor da fatídica tarde, as vésperas de entrarmos em 2012. Aguardava os familiares chegarem ao meu lar para iniciar os festejos fartos, de refeições gulosas e bebidas confortantes. Uma onda empolgada de vida, com muitas promessas e premissas para o ano vindouro. Eu bem sei que ninguém teria previsto de tal forma aquele som tenebroso. Afinal, o que tinham de tecnologia os governos da terra para, tal como em filmes, saber com antecedência do risco iminente? Nada, somente uma estufada ostentação de um conhecimento arcaico. Mesmo que inevitável, merecíamos um aviso, uma palavra de conforto.
Eu já fui racional o suficiente para desprezar a vidência, o ato profeta, o misticismo interesseiro. Mas é de cair o queixo de um cético. Foi de cair para mim. Naquela tarde, começou uma sincronia horrenda de eventos. A campainha ressoou aguda e ao mesmo tempo um zunido inda mais estridente a abafou e as janelas tremeram. Eu pensei: “O que diabos estão fazendo os vizinhos?”. Corri à porta, que estava sendo socada por algum parente em súbito desespero e foi tão simples o ato de abrir e só ter poucos segundos para olhar minha tia esbaforida. Atrás dela a sombra do universo, tão veloz que tirou a reação de todos. Foi um baque distante de nós. O suficiente para soterrar meu lar e de todos vocês, eu creio. Como retirar as lembranças de minha mente? Um observador lesado pelo objeto de estudo, preferiria ter morrido com as massas. Deus colocou a mão em forma de concha sobre meu corpo e intacto eu caminhei pelo vale das sombras.

Meus amigos, nós temos pouco espaço e muito a oferecer. Na próxima leva de registros continuarei meu relato. Um sobrevivente como vocês. Será que olhamos para as mesmas coisas?

Santo Geraldo


A SAUDE É O CAMINHO

Conselhos importantes de um médico

Queridos, assumi um compromisso de vida para com a vida de meus semelhantes. E mesmo na intempérie do fim do mundo como o conhecíamos, reúno minhas forças para que possamos enfrentar as adversidades e salvaguardar o bem precioso da vida. É notável a extrema poluição causada por elementos componentes de nossa superfície terrestre. A poeira, que cobre parcialmente nosso alcance de visão, irá se assentar com o passar do tempo, é o meu palpite. O caso é que não temos tempo para esperar. Problemas básicos irão acometer nossos “cascos”. 
Visão turva, conjuntivite, alergias na pele, garganta ressequida, febre, desidratação, complicações respiratórias, asma, convulsões e um sem fim de pequenos colapsos. Tenham, acima de tudo, otimismo. É de primeira ordem a necessidade de hidratar o corpo. Há muita água ainda disponível, pelo menos aqui, conseguimos coletar um volume considerável. Limpem a pele, organizem seu abrigo. Não permitam o acumulo da sujeira. Sei que é difícil o momento, mas sabemos o quão importante é mantermos um ambiente saudável. Em próxima oportunidade falarei sobre a filtragem do ar. Se houver médicos entre vocês, gostaria de saber.

Doutor Marcus Genoveva Siqueira 


COMIDA E ABRIGO

Juntos, vamos conseguir.
 Cobertores, colchões, travesseiros. Arroz, feijão e farinha. É mais do que o ouro e a prata já foram. Sejam, acima de tudo, solidários com o próximo. Esqueçam a palavra monetária. Não façam com que itens básicos virem moeda de troca. Não quero acreditar que ainda reste a mesquinhez do ego em um tempo bravo como este. Ponderem e sobrevivam.

Graciela Ramos 


UM GOVERNO, UMA NAÇÃO

É disso o que precisamos. Todos de acordo? Não sei, mas aqui entre nós, os novos comunicadores, somos a favor de uma rédea racional para guiar a sociedade. Particularmente, creio que a democracia não será a melhor saída. A verdade é que, num primeiro olhar, constata-se tristemente que a humanidade está à beira da extinção. Necessitamos de um líder nato, conhecedor, centrado, justo. Sou esta pessoa. Acreditem em minha pericia. Tenho 45 anos, vinte e três deles dedicados ao exercito, sou um sobrevivente de grandes habilidades e espero alavancar uma nova lei de convívio. É uma honra.

Saudações incomensuráveis, colegas.

Agente Vermelho



NOVO MUNDO

Não sabemos ao certo a periodicidade destes escritos. Queremos espalhar o bem maior, deixando o máximo de pessoas informadas e com uma visão ampla do que está acontecendo. Cuidem dos mensageiros. Eles têm três dias de descanso e sete dias de longo trajeto para ir e vir. Tenham fé.

Abraços confortantes

Senhor Vida.



EXPRESSO VIDA

 12 de Novembro de 2013 / Edição numero 02


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
Bravos senhores, senhoras e crianças. Nossa demora provocou grande ansiedade e preocupação, acredito. Novamente noticias do fim do mundo chegam até suas mãos. Espero que estejam bem. As folhas que seguem, estão em parte queimadas, amarrotadas, amareladas, esburacadas e com considerações finais escritas em tecido. Estamos fazendo o possível, de todo o coração. Nossos mensageiros voltaram à base, sãos e salvos. Viva! Temos números confortantes para vocês. Segundo uma contagem superficial, dentre todos os agrupamentos encontrados nas direções percorridas, somos quase novecentos ao todo. Médicos, engenheiros, advogados, escritores, donas de casa, comerciantes, autônomos, soldados, policiais, esportistas, crianças e segue uma lista imensa de funções diversas.
Que grande alegria saber das crianças. Nosso futuro ainda será vasto, meus caros. Temos uma região com um lago, vejam só que impressionante. A água é turva, mas consumível. Quem está em falta de mantimentos deve seguir para o oeste, perto do meteoro em forma esférica. Creio que todos podem ver este intruso espacial, grande como uma montanha. É lá que sobreviventes se agruparam em torno do lago. A depressão da terra, certamente abriu algum veio subterrâneo para esta água abençoada. É um prazer narrar às boas-novas.

Abraços confortantes

Senhor Vida



DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE

Choros e uivos guiaram meu caminho. Eram tantos os restos de corpos, que tal visão não mais incomodava os olhos. E o cheiro acre não podia ser evitado, era o menor dos problemas. O terremoto durou quatro meses, sem maiores estragos do que os feitos pelas grandes montanhas que caíram do céu. Os dinossauros certamente passaram por algo semelhante. Estarrecido, passei por um sem fim de rochas negras.
Toquei-as e rastejei por galerias, geladas e amedrontadoras. Não compreendo por que têm formas geométricas perfeitas, aparentemente. Alguém que me lê, deve ter se deparado com o monólito em forma de pirâmide. De que canto da galáxia se desprendeu tal aberração? Nós que escrevemos neste dito jornal, estamos refugiados sobre uma destas rochas espaciais. Com a dissipação inesperada do pó, vemos com clareza, ao leste, uma formação de monólitos retangulares, cravados em meia lua por quilômetros. Existe uma lógica, um plano em tudo isso? Já não me preocupa a presença destas pedras. Preocupa-me mais a mancha escura pairando estática acima de nossas cabeças. Daqui do alto, ouvimos um rugido. Trovões? Chuva? Aguardemos.

Santo Geraldo


A SAUDE É O CAMINHO

Conselhos importantes de um médico

Queridos, muitas questões retornaram com os mensageiros. Em especial, chamou-me a atenção o caso da senhora Jussara da “comunidade” Coração de Deus, no extremo sul. Pela descrição do Mensageiro numero 7, a senhora apresenta sintomas de uma infecção bacteriana, talvez. Entenda, é difícil um diagnóstico à distância, mas no “apocalipse” ele é necessário. Conte-me sobre a evolução da enfermidade através do Mensageiro numero 7.

Vamos falar da filtragem de ar. Como previ, muitos estão com complicações respiratórias. Ardência ao respirar é um sintoma preocupante. Se não podem se locomover do local, utilizem panos úmidos no ambiente. Costurem lençóis velhos e os usem como cortina. Sei que a água fará falta, mas com aplicação ponderada, todos usufruirão da boa saúde até que as coisas melhorem. A qualidade do ar já está melhorando, vemos os primeiros raios solares atravessando as nuvens. Esperança, meu povo. Há uma chance de vegetação, pelo menos é o que podemos ver daqui do alto.

Doutor Marcus Genoveva Siqueira 


OREMOS

A fé em Deus é fruto colhido nesta jornada de provação. Lembre-se de Deus, não importa qual for a sua religião. Não deixe a blasfêmia do diabo subjugar teu coração.

“Direi do Senhor: Ele é o meu refúgio e a minha fortaleza, o meu Deus, em quem confio. Salmo 91-2”

Ana Maria Rosa



HUMOR É VIDA

Até no fim, vale um sorriso


Por que os peixes comem muito?
Porque eles estão sempre com água na boca!
Ai, ai. Estou louco pra conhecer este lago,
do qual os mensageiros falam a respeito.
Quem imaginaria?
O fim do mundo combina com pescaria!


Beijos, lindinhos. 

Osmar Telada


UM GOVERNO, UMA NAÇÃO

Respeito é uma atitude do humano consciente. Espero ganhar o seu, meu caro sobrevivente e amigo. Estamos trabalhando na reconstrução de nosso mundo. O pesadelo está a quilômetros de distância. Enquanto isso nós tocamos a vida, preparados para um novo ataque. Não podemos fugir de uma pedra que cai do céu, mas podemos lutar contra quem jogou esta pedra. Força! Somos a resistência. O grito maior será o nosso. Comigo na força fronteiriça. Olhem os céus, aquela mancha é o inimigo.
 Saudações incomensuráveis, colegas. 

Agente Vermelho


NOVO MUNDO

Esperamos mais relatos de vocês sobreviventes, para rechear a próxima edição.

Abraços confortantes

Senhor Vida


EXPRESSO VIDA

 05 de Março de 2014 / Edição numero 03


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
Estou impressionado com as reclamações a respeito de nossos esforços. Tenho que discordar das opiniões dos desgostosos. Criticas sobre a inutilidade das matérias? Acham que é fácil escrever sobre intenso temor, engolfando as lembranças dos familiares mortos e ainda buscando a própria sobrevivência? Não discutirei sobre as mensagens recebidas, pois sei que é a minoria. Somente respondo que as utilizações de um rádio, como bem indagaram, não está nos planos e nem nas possibilidades precárias. A voz é efêmera, a escrita eterna.
Destaco, pois, o milagre que é saber que temos ainda vegetação nos quatro pontos cardeais. E ainda, agradeço o envio dos tubérculos. Viva. Que a vegetação se torne...

Uma doença contagiante

Senhor Vida


DEVANEIOS SOBRE A CATÁSTROFE
Antes das coisas melhorarem, elas certamente estão piorando. A mancha, a sombra que estava engolfada nas nuvens espessas desceu e mostrou a face repugnante, como podem observar. Estamos diante de uma invasão alienígena? Proteja-nos bom Deus. Uma serpente com nervos desceu entre os monólitos. Sua extensão e largura parecem inconcebíveis. O rugido aumenta no ar. Estamos apreensivos, pois as rochas geométricas abriram comportas. Delas saem grandes maquinas com canos apontados para o alto. Não vemos o que, ou quem, as pilota. Mas temos medo.

Espalhou-se.

Santo Geraldo


A SAUDE É O CAMINHO

Conselhos importantes de um médico

Abram os olhos. Seja lá o que for, está nos destruindo. Os mensageiros bem sabem. Questionem o raciocínio deles. Faleceu a senhora Jussara. Doença contagiante. Cuidado.

Matem:

Doutor Marcus Genoveva Siqueira


UM GOVERNO, UMA NAÇÃO

Parto para a batalha. Agora sabemos que existem criaturas no interior das rochas. As cidades dizimadas são receptáculos da ameaça. Junto de voluntários do leste, averiguarei o que são de fato. Confie em mim cidadão, seu líder.
 Saudações incomensuráveis, colegas. 

O vetor da doença

Agente Vermelho



HUMOR É VIDA

Até no fim, vale um sorriso
 
Eles me proibiram de fazer piada com a nossa situação. Mas oras, o melhor é rir da própria desgraça. Estou agora a observar um verdadeiro pênis extraterrestre descendo das nuvens. Rir ou chorar? Eis a questão. 


É o Mensageiro 

Beijos, lindinhos.

Osmar Telada




NOVO MUNDO

As entrelinhas do destino, meus amigos. É fundamental. O ataque vem das ameaças externas e dos compatriotas, infelizmente, tombados na loucura da enfermidade.

Numero 07

Senhor Vida


EXPRESSO VIDA

?/ Janeiro de 2015 / Edição numero 04


AMIGOS SOBREVIVENTES DO ABSURDO
A situação fugiu do nosso controle. Perdoem o vazio que deixamos sem um novo boletim. Doutor Marcus Genoveva Siqueira faleceu vitima de uma doença terrível, há quatro meses. Desconhecemos a causa, sabemos apenas de seu alto contagio. O pandemônio instaurou-se quando notamos os sintomas no Mensageiro numero 07. Sua fuga da quarentena deixou-nos ressabiados e temerosos quanto ao restante da população. Inserimos uma mensagem codificada na última edição e soltamos a mesma aos quatro cantos, na esperança de que alguém exterminasse a ameaça, escondida em algum lugar.
Infelizmente, não iremos continuar a distribuir estes escritos. Seis mensageiros não retornaram da jornada anterior. Não posso afirmar a morte do vetor da doença. Além do bom doutor, mais três amigos faleceram em dor, provavelmente contaminados. O Agente Vermelho não envia mensagens de seu avanço e Santo Geraldo permanece isolado em tal loucura, que temo por minha segurança. Recebi um binóculo encontrado pelo Mensageiro numero 3. Observo pontos de iluminação artificial, serão geradores? Vou rumar ao norte. Dois mensageiros se encarregaram da entrega deste ultimo informe. Cuidado com o leste, como devem também poder ver, surgiram fachos cintilantes, farpas de fogo saindo de maquinas estranhas, parecidas com canhões apontados ao céu. Certamente é uma nave de dimensões dantescas pairando como um alvo primordial dos projeteis. Não pagarei para conhecer esta guerra.

Serei mais útil no caminho. Generosamente lhes aviso: avistei vacas (bezerros?) ao norte. Esperança é uma palavra recorrente nestes tempos. Ela ficou colorida com a visão dos animais. A mãe natureza segue seu curso. Parto com vontade de conhecer vocês, amigos leitores. Fiquem em paz. Em breve os alcançarei.

Abraços confortantes

Senhor Vida.


“Lindo meu amor. Continue girando, isso, suavemente. Que sol lindo esta por trás de ti. Continue rodando”.

Sandro Menetti está na tomada final de seu curta-metragem. Sua moderna câmera digital capta movimentos ensaiados de Mariana, a musa inspiradora.

“Dê vida à personagem, minha linda. Deixe esvoaçar seu vestido”.

Em uma tomada de câmera debaixo para cima, Sandro Menetti sente o baque seco na cabeça. Sua espinha treme e a visão começa a escurecer. A musa grita e ele a observa pela câmera, numa imagem turva entremeada pela ponta de seus dedos.

“Ah, mas que êxtase na maravilhosa Mariana”.

- Solta logo essa merda, caralho!

Jubilo Demotape corre. Corre deslumbrado com o fruto de seu roubo. Está muito chapado para desviar da musa aterrorizada e a derruba violentamente no asfalto. Ele cruza o parque com a câmera ligada...

Nós vamos com ele. 

VINTEQUATROHORAS
ININTERRUPTAS 
DEDROGAS

QUEM É O CARA?

Jubilo Demotape é a pária do subúrbio. Aos dezoito anos, declarou-se filho legitimo do underground. Freqüentador de festas pervertidas, no centro velho da cidade. Casas de swingue, labirintos homossexuais, raves regadas a LSD, Heroína e maconha. Aos vinte anos conheceu um franco-português mais pirado que ele. Beni Chermont, anarquista burguês, bicho-grilo de universidade publica, filósofo recalcitrante.

- Que puta festa! Que som do caralho é esse?

-  A massage to your brain.

Jubilo tornara-se fanático pelas batidas eletrônicas e aceleradas. Dançava freneticamente. O corpo balançava de um lado ao outro, trombando nas pessoas e objetos ao redor. Não tinha pai, nem mãe. Não tinha parentes, não tinha casa. Vivia de pequenos furtos. Ele não tinha ambição, não tinha inteligência... E continua não tendo.

LENTE OBJETIVA

Jubilo corre. Encosta o visor da câmera no olho direito e continua a descarrilar. A imagem tremida retrata os transeuntes, os carros, a fumaça e na maior parte do tempo o chão. Pequeninos picotes de grama esvoaçando, purê de cachorro quente, jornal amarelado, chiclete rosa, chiclete verde, chiclete cinza. Bosta de cachorro, corrosivo rastro de pombo. Ponta dos pés, sarjeta, asfalto, calçada, sarjeta, asfalto, grama, grama, grama.

- Toma no cu filho da puta. Vêm comigo assistir meu curta. Curta do caralho.

Algodão doce, garota assustada, óculos de sol. Cooper de sunga, raquete de tênis, fonte, arvore. Grama, grama, grama. Jubilo Demotape urina no banheiro publico, na parede do lado de fora, tentando enquadrar a cabeça de seu pênis com a câmera.

- Ei desgraçado, para com essa merda. Filho da puta.

- Vai se fuder! 

Jubilo recomeça a corrida, filmando o velho que está lhe xingando. Corre com as calças ainda arriadas nas coxas. O visor no olho direito. Salivando, resmungando, tremelicando.
As imagens são indefinidas, vultos coloridos e trêmulos. Jubilo contorna a fonte e derruba com o ombro esquerdo um carrinho de pipoca.

- Vai ficar foda o meu curta. Vai ficar cavalar!

Grama, sarjeta, portão, asfalto. Sarjeta, calçada, chiclete, poeira, papel, comida, baratas, muitas baratas.

Ele entra em um bueiro semi-aberto nos fundos de um conjunto habitacional. Caminha no lodo sujo e fétido até um cubículo no fim de uma das ramificações do esgoto. Lampiões dão luz àquele local sombrio. Mais duas pessoas estão sentadas em caixotes de verdura.

A COLEÇÃO DE DROGAS DO TEX

-Demorou, ô cusão.

-Vão se fuder. Consegui a porra de uma câmera.

-Se a gente morrer, vai estar tudo documentado.

Os três ajeitaram-se envolta da mesa de tijolos e Tex abriu um saco de lixo, despejando seu conteúdo na superfície.

-Porra, Tex. Tem um braço do lado da sua perna. Que caralho é esse?

A luz do lampião rebate um corpo putrefato, espremido no canto do cubículo. Metade da carcaça esta afundada na lama, coberta de pequenos ratos, passeando e mordiscando a carne.

- Se liga, Jubilo. Esse é o meu irmão. Ele veio há três dias aplicar uma dose e capotou aqui no chão. 

-Puta merda que massa. Espero ficar assim, sinistrão.

Jubilo Demotape aproxima a câmera até o cadáver do irmão de Tex, cutucando os ratos com a bota.

-Senta ai, porra!

-Senhores. Prontos?

-Manda bala. O que vai ser primeiro?

Tex Boniclaide é o fármaco da galera. Debaixo de seus blusões de tricô, sempre um tubo de entorpecente, uma bucha de intoxicação. Loucura a pronta entrega. Sem custos, só pela amizade, pelo acesso fácil, pelo reconhecimento.

-Estimulo, depressão, alucinação, perturbação. Vamos endoidar.

Valium com cerveja. Lexotan com água mineral. Heroína na veia. Metanfetamina goela abaixo, na seca. Cocaína na fungada, esfrega na gengiva. Haxixe e fumaça. Quadradinho de LSD, debaixo da língua. Mescalina em conta gotas. Ecstasy e pirulito. Litro de vodka sem gelo. Água mineral, água, água.

COMPORTAMENTAL

Beni ergue a cabeça e assopra para o alto. Tex senta sobre o cadáver do irmão e Jubilo dança sua musica eletrônica imaginaria, agitando energicamente braços e pernas. O que um médico chamaria de quadro clinico, eles chamam de experimento. Náuseas e tremores acompanham o suor abundante que escorre dos corpos. O pequeno beco de esgoto gira lentamente. A atenção ao que acontece é reduzida e a agressividade toma conta do olhar de cada um.

JUBILO

Esmurra as paredes e sorri por não sentir dor, por ter uma força extrema.

TEX

Experimenta uma sensação de leveza e prazer. É um homem poderoso e influente.

BENI

Suas roupas, do século XVIII, estão perfumadas. Cortesãs disputam seu colo. 

JUBILO

Aperta com força a câmera em uma das mãos. As ascensões descarregam energia na muralha de Berlim onde tanto sonha em ir.

BENI

Dá voltas pelos parques imperiais da china, esperando ser reconhecido pelos pombos como um nobre francês.

TEX
Apalpa as pernas de seu irmão morto, mas este reclama das mãos ásperas. Vomita diversas pedras de diamante esperando que o morto o perdoe por suas faltas.

JUBILO
- Parece metal retorcido que escorre pelas veias, que me impede de passar. Essa força magnífica, flui com fel pelo caminho. Este alfabeto estúpido, entupido, que me impede de passar, me impede de passar, me... passar... A substancia misturada preenchia as mentes, delírio vai, perturbação e confusão. O ar viciado esmagavas, esmagavas. Alfabeto estúpido, entupido, que me impede de passar, me impede de passar.

.

FUGA

Correndo com sangue nas mãos, sangue na câmera, sangue nas roupas. Na cidade já escura. Jubilo Demotape ergue aos céus a cabeça de Tex. Filma em círculos a paisagem misógina daquele borrão deserto. Canta insultos, relembrando as batidas que tanto o completam de energia. Em sua cabeça, mil imagens do ontem e do amanhã. Não pode elucidar o que esta fazendo agora. A sua frente, cenas rápidas de Beni nu, mastigando cabeças de pombas e tijolos. Sangrando, com seus braços no estomago aberto, volvendo tijolos picados. Tex cavando o corpo do irmão, trocando de pele, trocando de lugar.
Jubilo está com o rosto branco de cocaína e corre mais pela noite. Gritando e filmando a cidade e suas visões. Ele pára seus passos para escutar as batidas violentas do coração. Olha abismado para o próprio peito. Há um buraco vazio por onde o vento passa assoviando. Dá voltas sem sentido pelo quarteirão. Os prédios estão mais altos do que o costume. Os becos mais claros e menos sujos. 

- Lá está o delinqüente.

A esguia forma humana contrasta com a parede de cartazes caóticos. No olho esquerdo uma câmera aponta para Sandro Menetti e na mão direita uma cabeça retorcida e ensangüentada pende horrivelmente. Os músculos tensos. Não há respiração, não há nada. O jovem diretor arrepende-se de ter chamado atenção daquele ser. A musa se esconde tremula por trás de Sandro. Os assistentes de produção estão reunidos em volta do diretor e apesar do numero superior, a visão do absurdo surreal de Jubilo, impede qualquer reação.
E o corpo medonho tomba rígido no meio-fio. E a madrugada acolhe mais uma alma perturbada. Jubilo Demotape não consegue retirar a membrana gosmenta que lhe envolve. O corpo é de gelatina, um choro compulsivo ataca. Num mundo desconfigurado, sem drogas, sem musica, sem nada que valha a pena contestar. Jubilo entrega, com a mão esticada no asfalto, uma câmera rachada, ensangüentada e com a bateria fraca.

***

Rolam os créditos finais na grande tela. O público aplaude com vacilo.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Sigo pela estrada digital neste trem feito de conexões. Leio folhetos de cultura inútil.

Chego ao meu destino, abro uma porta que não é porta, que não está lá. Sou atendido e atentado pelo Mc Terrorista. Compro espaço na mídia e lá passo a viver.

Com um sinal fraco envio votos de compaixão a todas as pessoas desconectadas; mas elas não retornam a mensagem.

Estou cercado por baterias descartadas da matriz, entre projetos espaciais e patrocínios da hipocrisia.

Munido de livre arbítrio, não posso aprofundar a percepção do homem doxa, habitante e freqüentador do meio eletrônico primário.

Estou apto, graças à permissão da pirâmide planetária, a veicular em todo globo, qualquer globo, a inconsciência programada, bombardeada de mentiras.

Sublinho a subliminar proposta, aprovada pelo protagonista da festa do refestelar.

Aguardo uma conexão mais rápida, pois já se esvai a fumaça branca, do tiro que saiu pela culatra.
 

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