sábado, 18 de dezembro de 2010


 



Ao Velho Noel (Bola na arvore) *

Pelo sagrado milagre de minha imortalidade, neste pedaço de papel eu lhe envio um aviso prudente. Não sei quando e nem como, mas uma criatura de outro planeta e de outra Mãe Natureza, má de tudo e sem sentimentos, vai atacar seu lar. Tratou de dar cabo de meus pêlos e minha sagacidade. Reconheci o corno singular que sai do pulso. Atrocidade! Fui levado até sua nave e vi uma lista reveladora e trágica. Há alusão a tua figura. Deixo-te como posso o aviso. Espero que chegue pela Cegonha.

Coelhinho da Páscoa (Patinha de neve) *



Vindo da galáxia anã “Grande Nuvem de Magalhães”, Mantú retorna ao planeta Terra. Ele segue em direção ao Pólo Sul para dar continuidade a sua lista de caça.

________________________________________

ףּ⌡۝
Jesus Cristo ⌂ ┼ ﻻ ﻹ ﻵﻍ ﻊ ﻒ ﭢהּ שּׁ ◙
Ghandi ⌠⌡◘ Ludwig Bonaparte Winston Colombo Da Vinci
Charles Darwin Diana Dickensﻍ Walt Disney Edison Albert E = MC²
Federico Fellini ﻍBenjamin Sigmund Galilei Hendrix
Alfred Hitchcock Adolf Ж Houdini Michael Jackson Kennedy Luther King
Kubrick Vladimir Lenin Lennon שּׁ Vurukatte Abraham Marley Michelangelo
Wolfgang Amadeus Deus◙ ﭢ Paul Newmanﻍ Louis Pasteur Picasso
Platão Aristoteles Poe Grigorij Rasputinﻵ Rembrandtﻍ Shakespeare Josef Stalin Teresaﻍ Nicola Tesla שּׁ Twainﻍ Vincent Van Gogh Orson Welles Malcolmﻵ ﻵ Azazel Lúcifer Gang do Lixoﻵ Curupira Kappa Lymantrid Moth Coelho Pascoal
Papai Noel (São Nicolau, Nicolas, NOEL ⌂ הּ) Ж Julian Assange Ж Roussef



Ỗٯلفאָ ףּ⌡۝۞۩
Mantú

________________________________________________________________

Planalto Antártico – 3. 247 metros sobre o nível do mar - 23 de Dezembro

A nave pousa e derrete a neve macia ao redor do seu perímetro. A superfície contém inscrições em diversos idiomas, riscados ao lado de pictografias primitivas e hieróglifos. Na parte de cima, há uma estrela de quatro pontas preenchida por uma cabala de doze casas que representa os signos do zodíaco.
O caçador extraterrestre salta de dentro da estrutura e cai macio na neve. Com a certeza de estar oculto, volteia o corpo com uma manta escura. Encurva-se e parte em direção as parcas luzes que bruxuleiam no horizonte. A neve floca no ar sem intervalos. Mantú ajoelha e afunda as coxas no terreno até a cintura. Fecha os olhos e pensa a respeito da posição das estrelas, a temperatura, o sabor e a intensidade da neve. Ele segue em frente até beirar um pequeno penhasco. Avista no centro do planalto um castelo de pedras ovais.

Treliças estaqueadas no chão contornam o castelo solitário. Mantú resvala as pontas da cerca com a palma das mãos e, utilizando sua altura, atravessa com facilidade para o lado de dentro. Ao tocar o solo, os pés não afundam como o esperado. Raspa a primeira camada de gelo e observa o próprio reflexo. Está em um lago congelado que contorna todo o planalto. O corpo esguio move-se com a articulação em espiral. Um pequeno tornado alienígena avança rumo ao primeiro portão.

Na torre Pai Natal, o Menino Confete, anão mais novo da família dos Bardos, maneja um binóculo com destreza, acompanhando o movimento do espiral que surge na extremidade norte do lago. Sem tirar o tubo dos olhos, pressiona dois botões no painel e brada a plenos pulmões:


“No extremo da cercania/
um estranho espiral surgia/
Observem nas torres o fenômeno/
acordem quem já dormia/
será que dessa moda/
Noel já sabia?”.


No dormitório Chocolate, ainda sonolentos, os anões Bardos escorregam de suas camas e correm em direção a Maximizada Janela Rotacional.

– Confete não cantou o lado que vem o tal espiral. – Diz Selanofix, erguendo sua ceroula listrada até os joelhos.

– Vamos dar uma panorâmica. – Decide o Eterno Aprendiz Sardentinho.

O teto ergue-se por quinze metros e a sala alarga-se por mais quinze e começa a girar lentamente. Na metade da primeira volta os anões Bardos observam a escuridão da noite. Neste tempo, adentram a sala os duendes de Raiz, ouriçados com a perturbação do dormitório subterrâneo.


– Calem-se, verrugas. Olhem para aquilo. – Impera a anã Cenoura.

Ao completar a rotação, presenciam de frente o tornado.

– Aquilo é uma força da natureza. – Observa Minarete, o duende místico.

De volta à torre Pai Natal, anão Confete aumenta o foco de seu binóculo e pressiona novamente o painel.

“Quero avisar/
Há esta hora/
Melhor acordar/
Aquela coisa tem braços e pernas/
Como pôde nos encontrar?”.


Na Maximizada Janela Rotacional, agora lotada, as famílias discutem.

– Está no limite de entrada.

– Confete tem razão. Um intruso.

– Pode estar perdido.

– Ele é grande. Não parece humano.

– Avisem Noel.

Mantú cessa o avanço. Em frente da passagem principal, fecha os olhos e inspira. Do punho direito cresce um chifre espiralado e pontiagudo. Dois braços de neve imediatamente abraçam o extraterrestre. Um extremo frio congela sua pele lisa e prateada. Mantú liquefaz o corpo e entra por inteiro no grande boneco de neve que o ataca. A bola de neve, com ameixas secas no lugar dos olhos e um ramo de cipreste fazendo às vezes de nariz, salpica neve numa tremedeira involuntária. Ressurge o caçador, banhado de água.
O intruso crava o chifre na porta principal que cintila intensamente junto à energia do espiral de osso. A estrutura vai ao chão com um estalo seco, partida ao meio. No Quarto Magno, Papai Noel termina de colar a última placa de madeira no vagão em forma de gôndola de sua miniatura ferroviária. Ele suspira e retira os pequeninos óculos dourados. Na borda da janela embaçada, uma miniatura de boneco de neve derrete em velocidade.

– Quanta maldade! Não é homem, não é mulher. Não é animal. É o mal, é o mal.

Maximizada Janela Rotacional

– Pelos meus minérios! – Exclama o duende Caracoles. – A criatura extinguiu Bruno Floco de Ameixa.

– E invadiu nosso lar! Armem as defesas.

– Não esperava enfrentar inimigos desde os trigêmeos Mathiesen. – Sussurra Honorário Elias, o vovô pigmeu.

Anões. Centenas de anões. Todos correm de um lado ao outro nos grandes corredores do complexo. Num dos galpões, Esmir, o gigante, puxa com esforço a alavanca “Pão de Mel”. Todas as paredes de aço estremecem e o chão de carpete felpudo ondula com vida própria.


– Começou?

– Acione a esteira do galpão Estrela.

– Os brinquedos estão a salvo!

– Bom trabalho, Esmir.

– Debalexa! Organize os menores e leve-os para as Nozes de Marzipan.

– Confete! Acione a oitava faixa do Vesúvio.

A sinfonia de violino intercala gemidos com trovoadas. A luz do complexo em meio tom.

– Sinistro! Há! Boa peça pregará. Boa peça.

– Silêncio Borma. Agora o temos encurralado.

– Temos, é? 
A descida da alavanca “Pão de Mel” muda a estrutura da fabrica. A música horripilante, o chão que ondula e o labirinto de corredores. Tudo feito para proteger os três corações: Sala de Brinquedos, Sala de Cartas, Casa de Sonhos.

– A coisa vem pela espinha principal. Fiquem atentos!

Mantú anda rápido. A ilusão causada pelo movimento do chão não o perturba. Ele ergue a cabeça ao ouvir uma voz de barítono ecoar pelo corredor, vinda com um vento quente.

“Vá embora. Vá embora.”

E o vento quente aumenta a vazão. O caçador rasga como papel a parede à sua direita, com o poderoso chifre.


Sala de Brinquedos


Imóvel por um longo tempo, Mantú observa o setor onde acabara de entrar. As paredes verdes e aveludadas cospem sem parar muitos brinquedos, dos mais variados, em tamanhos e cores diferentes. Ao tocarem o chão, púrpuro e arenoso, as formas se evanescem por completo. Muito acima, o teto dá luz a um dragão verde e reluzente, que ao contrario da infinidade de brinquedos, não desaparece quando chega à altura de Mantú. Ele envolve o corpo esguio do invasor, soltando vapor em sua face. Mantú firma um dos pés na coxa do monstro e impulsiona o corpo pelas suas costas, riscando a carapaça da criatura com o chifre.
A asa esquerda do dragão atinge o ombro esquerdo de Mantú, e este cai de joelhos. O chifre cintila e é cravado na cauda da fera. Das escamas verdes surge um gladiador com o dorso nu e um elmo negro. As asas recrudescem e em seu lugar brotam braços fortes, manejando uma espada e um machado, respectivamente. Mantú enrola-se na capa e vai de encontro à aparição guerreira. O machado trisca o ventre do alvo e a espada trisca o chifre brilhante.

O gladiador chuta o peito de Mantú e retoma a posição ofensiva, bradando a espada de um lado ao outro. Ele arremessa o machado e salta. Mantú rodopia para trás e crava sua arma na nuca do brutamonte. O sangue espirrado toma forma no ar e se agrupa como um cachorro de três cabeças. A pelagem, os dentes e os olhos; o vermelho predomina intensamente. O Cérbero abocanha com três mandíbulas o dorso do caçador. Ele liquidifica o corpo e se emaranha nos pêlos do selvagem animal, que é absorvido por completo e cuspido como uma bola disforme. Mantú retoma seu corpo trincado.

Blocos grandes e coloridos despencam do teto. Caem aumentando a velocidade e suas configurações complexas. Mantú galga os blocos com destreza até a abertura, mas sua perna esquerda não escapa de uma peça dobrada e fica presa entre as figuras. Resvalando no estranho teto, ele retorce o corpo ao sentir labaredas descendo ao seu lado. O fogo fulgura do pescoço incompleto de um quadrúpede branco que desce pela abertura. A mula lustrosa emite um relincho abafado do peito e a ventosa de fogo arde com intensidade. Em seu lombo há um samurai com a cabeça de uma raposa, manejando quatro adagas. Mantú usa o chifre, que rutila inda mais forte que anteriormente e causa uma explosão que o leva para um patamar acima, perpassando a estranha sala e deixando para trás e em pedaços, todas as ameaças.

Sala de Cartas

O antropomorfo usa os sulcos do trançado de sua arma mágica e cura a pele aberta da perna esquerda. Recomposto, ele afunda os dedos na coluna de cera do escuro ambiente onde acabara de se refugiar. Um tacho de fogo é aceso no topo da coluna. Brilha a vela corpulenta que clareia uma esfera bem definida em seu contorno. 

“Oi papai Noel eu tenho oito anos minha mãe pediu pra eu escrever para o senhor. Eu tinha um boneco do vovô me deu, ele fez com o galho da arvore de jabuticaba. E eu perdi ele. Se o senhor puder achar eu queria mostrar pra mamãe. Eu não queria perder o boneco que o vovô deu. O vovô já foi para o céu. Eu sempre me comporto o ano todo, ai nesse ano papai Noel o senhor pode mandar o boneco junto com o carrinho de ferro que o Pedro da escola ganhou do tio dele eu quero um pra brincar junto e com o boneco também. Ta bom? Obrigado papai Noel .
Feliz Natal.
Lucas “

“ Este ano eu vou acordar no natal e ver você papai Noel. Daí não fica com medo por que vai ser eu. E eu quero uma arma igual a que minha mãe mexe no quarto dela. Daí meu pai disse que os vermes do vizinho que fala engraçado não vai nunca atrás de mim. Beijo papai Noel .
Alécio
12, novembro 1972”

“ Pai Natal , boa noite para o senhor. Sei que mora muito longe e é muito frio e eu não quero te aborrecer. Minha irmã ta com muito frio também. A mamãe colocou ela numa caixa. Você pode dar uma coberta pra ela e eu quero uma boneca.
De Ana.”

“São Nicolau, traz tua luz generosa nesta passagem tão bela. Que o amor espalhe sua benção por toda a eternidade. Amém.

Cristina P. Gaudério

1898"


Papai Noel termina de ler a última carta e a joga na imensa pilha ao seu lado. Sua aparência é de um adolescente de cabelos castanhos despenteados. Os olhos estão mareados por conta da difícil leitura das letras miúdas. Ele levanta de cima de um monte desorganizado de envelopes e escorrega para baixo.
A voz de Mantú enlaça a obscura sala:

– Creio poder afirmar, sem arrogância e com a devida humildade, que a minha mensagem e os meus métodos são válidos, em sua essência, para todo o mundo. ¹

A voz de Papai Noel responde em tom maior e apaziguador:

– Em uma vasilha, faça uma bola rasa com cem gramas de farinha de trigo, o fermento e um pouquinho de água. Deixe descansar por quinze minutos. Após o descanso, adicione frutas secas e as uvas e faça uma massa bem macia. Deixe descansar uma vez mais, coberta por um pano. Após este descanso, faça bolas cheias e fofas, coloque em formas e deixe descansar novamente até quase atingir o dobro do tamanho. Após tudo pronto, pegue uma lâmina, faça os cortes em formato de cruz em cima de cada panetone, puxe as abinhas para fora e coloque por cima uma colherinha de manteiga sem sal. Leve para assar em uma forma de papel. Reparta com os amigos. Pois é de amigos que tudo se trata.

Mantú passa os dedos afiados sobre o queixo pontiagudo, ressabiado com o assunto.

– O tumulto é a linguagem daqueles que ninguém entende. Se a história ensina alguma coisa, é que o mal é difícil de vencer, tem uma resistência fanática e jamais cede por vontade própria. ²

Noel altera sua forma humana, de um jovem esbelto, o corpo assume feições de um adulto corpulento; de rosto corado, os olhos verdes e fulgurantes a fitarem com grande luz o impiedoso invasor.


– Misture leite condensado e leite de vaca. Bata na tigela, com um garfo, os ovos de galinha selvagem. Esquente uma panela de ferro cheia com óleo, mas não deixe ficar tão quente. Passe as fatias de pão amanhecido na mistura de leite e depois nos ovos batidos. Frite até dourar de ambos os lados. Passe no açúcar com canela. Agradeça seus pais por tudo que você é e coma com a gula livre de remorsos.

O caçador extraterrestre se atraca a coluna de cera da vela gigante e a derruba em direção as cartas.

– Eu acredito em tudo, até que seja contestado. Assim, eu acredito nas fadas, nos mitos e em dragões. Tudo existe, mesmo se estiver só em sua mente. Quem é que poderá dizer que os sonhos e os pesadelos não são tão reais quanto o aqui e o agora? ³

Papai Noel sopra a ponta em chamas da vela antes dela cair por sobre os papéis amarelados.

– Tempere um gordo Peru com todos os temperos que tiver em seu jardim. Deixe-o, já de véspera, enterrado na neve, de molho nos temperos, virando-o a cada quatro horas. No dia seguinte, prepare o recheio com castanhas portuguesas cozidas, uvas passas, manteiga, farinha, miúdos e recheie o peru. Com cuidado para não encher demais o papo, costurando as cavidades. Prenda as pernas do peru uma na outra, decorando com papel recortado, preso com uma linha. Besunte-o todo com manteiga e o ponha na assadeira, de papo para cima. Cubra todo o peito com fatias de bacon divino. Regue com vinho branco italiano. Cubra com um papel alumínio e leve a assar em forno de lenha. Após uma hora e meia, descubra-o, regue com o caldo da assadeira e volte ao forno ainda coberto. Uma hora depois, descubra-o e deixe até que tome um tom dourado escuro, regando, a cada quinze minutos, com o caldo da assadeira.

Papai Noel retira uma pequena trouxa com Pó Saltitante e a arremessa no chão. Suas botas brilhantes sapateiam e toda a grande barriga de Noel chacoalha de encontro a Mantú. Os dois rolam pelo chão com o impacto. Noel espreme o caçador contra o chão. O corpo cinza derrete no solo de cartas e desaparece. Uma passagem em arco, feita de paçoca, abre-se e do recinto reluz um jogo de cores embaralhadas. As renas gigantes avançam em marcha e são interrompidas pela voz de seu amigo:

– Afastem-se. Está dentro de mim.

Toda a família natalina se reúne na Casa de Sonhos.

– Venha pra cá, Nicolas. – Grita Jenipapo, o duende da Folha.

Casa de Sonhos

Papai Noel retira outra trouxa da cinta e salpica Pirlinpinpin pelo corpo. Sua fisionomia muda diversas vezes. Ora Noel, ora Mantú, ora duende, ora anão. Numa luta solitária de feições retorcidas, ele flutua até a Casa de Sonhos.

– Tranquem a porta! Isso acaba aqui! – Exclama Selanofix, afastando os presentes em um grande circulo.

O chifre no punho de Mantú rasga o peito de Noel e o corpo parasita cambaleia para fora. Papai Noel emana uma luz branca de todo o corpo, recompondo-se por inteiro. Sua mão firme agarra o chifre em espiral.

– Teu pensamento revela o extremo da abominação.

Mantú urra de dor enquanto o chifre vibra com um ruído de pistão vindo de dentro do seu corpo extraterrestre. O punho é destroçado com o nascimento de um crânio comprido. O antebraço é partido ao meio e o corte sobe até o ombro. A forma presa ao chifre revela uma cabeça de cor rosa e olhos de um azul profundo. O sangue negro do caçador jorra sobre Noel. Renasce o unicórnio, abrindo Mantú ao meio.
– Bem vindo à vida. Uma vez mais, magnífico Vurukatte.

Como uma harpa mágica, o unicórnio relincha, inclinando-se em reverência ao Papai Noel.

– Nicolas, encontraram uma nave. – Desabafa Debalexa, esbaforida.

Anões, duendes e gigantes circundam o corpo destroçado de Mantú.

– Chegamos à véspera de Natal, família querida. Empacotem a carcaça da criatura e carreguem meu trenó. Quando eu retornar, exploraremos a nave. Refaçam Bruno Floco de Ameixa e desliguem as armadilhas do castelo. O pior passou. Não me esperem para a ceia. Vou jantar com o Patinha de neve.

Papai Noel retoma sua forma de criança e sai correndo pelos corredores, desejando Feliz Natal a todos que lá se encontram.

¹ Mahatma Gandhi

² Martin Luther King
³ John Lennon

sábado, 11 de dezembro de 2010

A Palma de Torquato


Em 1889, o barão Alvaro Torquato (Campo Boi Mirim) desenvolveu uma dinâmica para escrever com fluidez durante suas crises de depressão. Diante de uma pilha de folhas e com sua pena abastecida com tinta, Alvaro Torquato levantava-se de súbito e passava a bater palmas em um ritmo marcado. Acompanhava a batida com frases cantadas em idioma inexistente. Este procedimento não linear e de livre exercicio imaginativo despertava uma onda de escrita satisfatória diante de seu bloqueio anterior.

As obras de Torquato foram compiladas por José Agrião em 1937.

*

O fumo de corda condutor

Costume resgatado por Almeida Moreno no livro Causos Controversos (Editora Cipó).

Os irmãos Botelho Bueno, nos idos de 1950, eram frequentadores assíduos dos saraus na noite paulistana. Em meio a troca cultural, promoviam leituras de mini contos sobre a vida no campo, discorrendo de forma teatral por horas. É sabido que muito do material apresentado não foi escrito previamente e mais da metade ficava por conta do improviso.

O detalhe é que grande parte da narrativa era intervalada e sustentada pelo constante "picotamento" de fumo de corda (adquirido em larga escala no Mercado Central) e posteriormente feito o seu consumo em grandes cachimbos lapidados a mão.

Diz um folhetim de fofocas que os irmãos Botelho Bueno, na falta do fumo de corda, deixavam a qualidade e o ritmo de suas narrativas decair ao ponto de interromperem o exercicio e praguejarem pela falta do fumo como condutor de sua imaginação.

Por conta de incendios, 90% de suas pequenas obras foram perdidas para todo o sempre.

Primeiro a sopa depois a poesia

O poeta Carlos Conselho respondeu em coluna da Mirian Blat no Jornal Dia do Sul (1992)

MB: Carlos, grande parte da tua obra faz alusão ao universo culinário. De onde surge tanto apetite na poesia?

CC: Como sou insone há mais tempo do que gostaria de lembrar, adotei o costume de me entreter com comida na madrugada. Mesmo não sendo algo saudável, acarretou-me um conforto como nenhum outro calmante o fez. Mas não era o suficiente para aplacar a monotonia. Ai entrou a poesia. Portanto vem a ordem: primeiro a sopa, depois a poesia, dai vem o livro e agora é a entrevista.

MB: Sopa? (risos)

CC: Sobretudo em minha gana, sopa!

*

Letras na chuva

Renata Escorpa Nogueira (REN) escreveu, entre 1972 e 1986, 50 romances policiais. Em todas as obras havia uma nota da autora na folha de rosto com os seguintes dizeres:

Escrito nos dias ... do mês ... na chuva.

R.E.N.

Ela conta em sua biografia:

"Ficava em grande espectativa quando amanhecia o céu nublado. As primeiras gotas desciam e lá ia eu, com minha Olivetti, cadeira de plástico e capa de chuva. Claro que tinha todo um aparato de sacolas encapando a máquina e mesmo com cuidado extremo, perdi muitas páginas borradas. A coisa de escrever na chuva deslanchou quando fui acrescentando apetrechos ao redor do meu jardim. Fiz até uma cabaninha para os intervalos. Escrever na chuva foi o meu prazer e minha terapia. Sei que meus detetives não ficaram ensopados para resolver os mais espetáculares casos."

(SARNA, João Andrade. A moça das letras na chuva, São Paulo, 1999, p.32)


***

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Cyber Junky Sexy Bar 
apresenta:



_


Elas são gemas


_



Ano: 2.085

Anel 2 - Zona Amorfa da constelação Andrômeda


Um estrondo repercutiu pela plataforma de pouso. A lataria sucateada da Gertrudes V ralou as placas de titânio do piso até bater na guarita. A aparência rústica da nave se desfez e aos poucos, rangendo e vibrando, Gertrudes V virou do avesso, revelando um contorno polido de aço niquelado. Arnaldo "Tesão" Kass pulou para fora, sacudindo seu macacão ultra selado feito de verbena a 500º graus.

- Chamô, chamô pessoal! Tô na área.

A plataforma superlotada, forrada de estrangeiros, perdia-se em curvas, gritária e pilhas de encomendas, amontoadas de qualquer maneira ao longo do circuito. Kass carimbou o visto de permanência e passou três horas preenchendo um formulário de entrega, perfurando a lâmina de aluminio com um canetão laser.

- Pô bixo, tu tá me dizendo que do Rio até aqui, eu tenho que deixar sinalizadores betas por todo o caminho?

Aquele polvo hominideo encarou Kass com a impaciência de seus vinte olhos obliquos. Ergueu seu tentáculo numero 6, lilás e gosmento e apertou com leveza a nadega dele.

- Ah, seu puto. Toma essa merda de prancheta. Termina você de marcar essa porra. Eu to indo pro bar.

Kass trombou meia duzia de anãs laranjas, esbravejando contra o polvo hominideo, lilás e gosmento, que lá ficou, sorrindo animado. Virou três plataformas à direita do pouso e entrou de uma vez. 

"Bem vindo ao Cyber Junky Sexy Bar. Experimente nossas bebidas. Bem vindo viajante das estrelas."

A voz feminina saiu das duas caixinhas enferrujadas de som, penduradas na porta. Kass puxou um banco para perto do balcão.

- Eae Abecê. Bota duas talagadas de cachaça.

Abecê, o barman, firmou o laço de sua bandana encardida na testa e sorriu. Desarrolhou uma garrafa em forma de azeitona e a encostou no nariz de Kass.

- Deus é mais! Essa veio de onde?

Abecê serviu a dose, tampou a garrafa. Coçou o cotovelo esquerdo e debruçou sobre o balcão.

- Veio de um tal de triangulo com minas.

- Tái, meu velho, um lugar que nunca ouvi dizer.

- Coisa boa, coisa forte, Kass.

- Meu bisavô tomava isso. Meu pai tomava também. Tô tomando por causa disso e também que é coisa brasileira.

- Ah... É, lá da Terra. Isso é.

Kass virou o corpo sobre o banco e olhou o salão. Um neon lilás predominava no ambiente, terminando na borda do balcão.

- Isso aqui, Abecê... Isso aqui está deprimente.

- Estamos de luto.

- Luto? Por causa do Colapso Lizard?

- É, você sabe.

Kass alinhou a barriga no balcão, de frente para Abecê e também debruçou o corpo.

- Hey velho, descola alguma gata exótica?

Abecê abriu a boca com um sorriso de dentes separados. Endireitou o corpo e pegou uma caderneta debaixo do balcão.

- Mas é claro, meu querido. Tudo para um conterrâneo.

Abecê dedilhou as páginas da caderneta com uma expressão séria.

- Kass, vulgo “Tesão”, grande Kass. Meu amigo, dei-me conta de que talvez toda a população de gostosas que operam nesse canto do espaço, está no enterro do Capitão Colapso Lizard.

- Ah... Bela bosta. Pô, cara! Estou subindo nas paredes da minha nave. Arruma qualquer coisa.

- Eu tenho duas coisinhas especiais, cheias de excitação. São irmãs. Inseparáveis. São gemas. Se você gosta desse tipo eu...

- Puta vida! 

Arnaldo “Tesão” Kass ficou de pé e espremeu os dedos no balcão.

- É isso Abecê! Pode marcar,AGORA! Pode cobrar quatro horas. Aí cara... Você é sádico, guardando essa belezocas.

Abecê ergueu as sobrancelhas.

- Olha, Kass, eu raramente as oferto. Quem gosta delas e só vai com elas é mesmo o povo lá de Mirion, cê sabe... Lá do segundo anel de Saturno.

- Oras, aquele bando de casca grossa? Que isso meu amigo, eu vou dar um trato que elas vão se apaixonar então.

Abecê meneou a cabeça e colocou um fone no ouvido.

- Posso marcar então?

- Pode.

Discou um numero de quinze digitos e falou numa lingua cheia de estalos.

- Elas vão estar no cubiculo 12. Só que, daqui duas horas.

- Eu espero bicho. Desce mais cachaça.

Kass bebeu gole por gole, impaciente. A visão, um pouco turva, observava criaturas indo e vindo do Cyber Junk.

- Abecê, de onde são mesmo essas irmãs?

- Organitrom. Longe pacas.

- É aquele planeta que se ergueu chupinhando tudo que era orgânico da terra, menos...

- ... menos os humanos. É esse mesmo, Kass.

- Meu primo já foi fazer entrega lá. Porra, ele vai pirar, quando souber que transei essas gatas.

- Escuta só, os caras de Mirion dizem que é como comer Fugu. Sabe sushi de Fugu?

- Sei. Em exagero, você pode morrer, ou não.

- Mais ou menos isso, Kass.

- Bando de frouxos.

- Eles pagam por quinze minutos, todas às vezes, não mais que isso.

- Danem-se. Dá mais dessa cachaça.

Passadas as horas de espera, Kass levanta desequilibrado, derrubando frascos de solução salinica. Entrega o cartão de debito intergalatico para Abecê e aguarda o registro de seus gastos.

- Cobra o prazer aqui também?

- Claro chapa!

Kass desceu dois lances de escada. A temperatura caiu e as paredes estavam repletas de salamandras da neve. Uma prostituta velha esfregava uma das salamandras entre suas pernas gordas. 

- Que cara é essa, querido? Todo mundo se limpa com o bichinho.

Ele desviou da velha e girou o disco da porta do cubiculo. Uma voz metálica e feminina ecoou no quarto:  

“Bem Vindo ao aposento 12 do Cyber Junky Sexy Bar”.

- Blá, blá, blá... Garotas, o “Tesão” chegou! Garotas?

Kass fechou a porta e uma luz suave e branca preencheu o cubiculo aconchegante. Mergulhou numa cama de couro e desajeitadamente livrou-se da roupa. Do pequeno banheiro, de frente a cama, vazava uma luz pela soleira, entremeada por sombras disformes. Ele ouviu risadas estridentes. Com a visão embaralhada ele acompanhou o lento abrir da porta.

- Pode vir, tá duro já.

Mais risadas. A porta abre. Kass esfrega seus olhos embriagados. Uma claridade amarela invade o cubiculo. Risos. Esfrega os olhos. Duas coisas partem para cama. Mais risos. Esfrega mais os olhos. Duas gosmas amarelas e disformes sobem na cama. Risos. Passa a mão na cara. As gosmas sobem por sua coxa. Quente, muito quente. As gosmas riem. Um cheiro nauseabundo corroe Kass.

Enjôo. Quente, quente. Risos. Gosma na virilha. Uma parte dura da gosma desce a cueca. Quente, muito quente. Enjôo, mistura azeda subindo na goela. Cheiro de ovo. Ovo! Amarelo no peito. Gosma na boca. Suga lingua. Risos. Gemido. Quente, queimando. Queimando. Olho revira. Vontade de gritar. Gozou. Gozou? Ovo.

Quatro horas depois, Abecê enxugava copos com sua própria bandana, enquanto passava um palito de madeira de um lado a outro da boca. A escada em espiral no centro do bar foi deslocada, surgiu uma figura trêmula, desbaratinada.  

- Kass meu querido, gostou das... Nossa mãe do céu... Kass?

O trôpego viajante das estrelas se ajeitou no banco do balcão. Seu corpo fedia e sua pele estava toda queimada. Ele pediu uma agua. Sua voz estava rouca e ressequida.

- Seu grande... Grandessissimo filho da puta!

- Eu avisei, Kass...

- Avisou... Porra nenhuma!

- Claro que avisei. Elas são gemas!
 

Copyright 2010 Letra, Papel!.

Theme by WordpressCenter.com.
Blogger Template by Beta Templates.