quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Um corredor abafado anuncia a melancolia do local. Cinco pessoas aguardam para atravessar a porta. Homens de semblante cansado. Roupas empapadas em suor. Dedos nervosos agarrados em revistas sobre temas obscuros. Copos plásticos cheios de água vacilam na mão dos dois últimos da fila.

Horas antes, em uma pequena casa.

Um homem triste coloca uma colher cheia de açúcar numa xícara de café. Sentado diante de uma pequena mesa, cheia de farelos de pão e marcas de copo, Alexandre passa os olhos por cima dos classificados de um jornal antigo. A esposa caminha por detrás dele carregando um bule fumegante e o coloca por cima da mesa. Ela senta em frente ao homem e o observa enquanto passeia a ponta das unhas sobre o pano gasto.

- Será que você não percebe? – A mulher questiona de supetão.

Ele revira os olhos sem levantar a cabeça.

- Até quando a gente vai viver nessa miséria? É incrível sua capacidade de ser inútil. O tempo todo. Será que todos os dias eu tenho que te chacoalhar, te acordar para o mundo?

Inclina a face em direção a mulher, com surpresa.

- Você fica fingindo que procura um emprego, finge que vive bem, finge que liga para mim. Há quanto tempo não fazemos amor?

Treme as mãos enquanto dobra o jornal.

- Me diz... Há quanto tempo? É como dizem as revistas, a culpa é sempre do homem, sempre. Um cozinheiro de merda, sem emprego, sem futuro, desprovido de beleza, de dinheiro, de cérebro. Me diz... Eu tenho mesmo que me acorrentar a você pelo resto da minha vida, até você se tornar um capacho velho?

Alexandre baixa a cabeça em direção a xícara de café. 

- Pensa bem nisso... Pensa se você vai me ver, quando voltar essa noite. Fica olhando pelas ruas, quem sabe você não me vê com um belo vestido, cheia de jóias, me dando bem com um homem de verdade. Olha querido... Propostas, eu tenho certeza que não faltam. Tá bom?

Ele a olha e fez menção de responder, mas é interrompido pelo sermão.

- Vai ficar me olhando com cara de bunda? Seu reprimido... Não é homem nem para me dar uma surra, não é? Seu problema é psiquiátrico, porque não vai se tratar? Já imaginou? Você se cura desse muco ranhoso que te cobre e cai na real... Imagina... Seu meio homem... Você voltando para casa curado, cheio de raiva, me xingando. Gritando o quanto é bom ser homem de verdade, dizendo que eu sou uma ingrata e que passei dos limites, me espancando... Já pensou nisso? Já pensou? Pensou?

O homem esfrega a mão pelo próprio rosto, apertando a face com força. Recolhe o jornal, fica de pé. Observa a face impassível da esposa o encarando.

- E então? - Ela pergunta.

- É mesmo, você tem razão. - Balbucia o homem.

De volta ao corredor frio, por detrás da porta onde homens aguardam por sua vez, há um ambiente sofisticado! Seis mesas arranjadas de maneira geométrica ocupam o salão. Sentados ao redor de cada uma delas, figuras distintas.

Um piano negro é dedilhado com fervor por um senhor de porte majestoso. Na mesa numero 13, chega o casal. Alexandre, empenado em um terno de quinta categoria, incomodado por sua falta de costume com o traje. Os sapatos rangem e comem as meias, parecendo denunciar a presença invasora. A acompanhante, sua esposa, abafa qualquer outra presença, qualquer fato, qualquer adendo.  

- Boa Noite - Diz em tom áspero o maitrê, para em seguida acompanhá-los até a mesa.

Esplendorosa, a mulher brilha em um vestido vermelho sangue, de longa cauda. Um decote ousado no tórax é par de um pronunciado decote na coxa. Lábios carnudos ostentam um vermelho desafiador, conjugados ao vestido. Um cometa ardente é o que acaba de adentrar aquele recinto de cores embaralhadas. Na mesa reservada, no centro do salão e próxima ao piano, Alexandre, desajeitado, sorri ao ver os detalhes dispostos de maneira impecável. Uma toalha vermelho tomate cai pelas bordas da mesa até tocar o chão. Talheres de prata, taças de cristal e no centro, destacado, um vaso recheado com rosas vermelhas.

O pianista parte para um toque intenso, intrometido. O casal se acomoda.

- Um Bloody Mary. Pediu o maltrapilho para a dama de fogo.

- Um Whisky vagabundo.

O pianista diminui o ritmo.

Ela não para de olhar seus olhos. Ele treme. Engole a bebida. Ela devolve a reação com movimentos sensuais, molhando o lábio na bebida picante e avermelhada. Não existe contraste algum, a esposa é o mais puro vermelho. Alexandre afrouxa a gravata. O suor escorre como o de um velho porco. Seus olhos doem.

- Deseja o prato do dia? - O garçom é gentil.

- Sim. É galináceo? - Interroga o homem.

- Creio que desta vez seja.

- Ótimo. - Responde satisfeito. 

- A madame?

- Carne, suculenta. Faça com que ela sofra, como um macho de verdade. - Afirma a dama em vermelho.

Ela come o filé cru! Vermelho lânguido. Passado rapidamente em um fogareiro de chamas altas. Alexandre come ovo cozido, mole por dentro. O piano volta frenético. O cidadão, visivelmente desconfortável, faz menção de levantar-se. A dama de copas derrama sua bebida na mesa. Ele volta a sentar. Descontrolado, tenta absorver o liquido com um guardanapo de pano. Olha ao redor, estarrecido.
Nas outras mesas, cada ocupante entretido com seu pedido. E a dama lhe esclarece:

- Tudo aqui é voce, ainda não percebeu? Olhe em volta.

Em uma mesa, vê a si próprio, massageando um grande peru recém depenado. Cheira a pele arrepiada da ave. Na mesa seguinte, Alexandre aparenta trejeitos afeminados, com um gigantesco guardanapo preso envolta do pescoço, comendo chumaços de pêlo. Por trás, em outra mesa, faz caretas para um prato coberto de matéria putrefata. Na última mesa do salão, Alexandre é um velho, brincando com uma colher e rodopiando-a numa sopa, com uma coleira aveludada no pescoço.

- Você, sempre conformado com o lixo que costuma engolir; saia desse beco escuro da mente, Alexandre. Você, que se conforma em satisfazer seu prazer com carne crua, a enfrentar a carne nua. 

- Sim, sim, sim. Você tem razão. Você tem toda a razão. – Responde Alexandre com a voz surpresa.

O homem de terno abarrotado torna a olhar para a acompanhante. Pálido, as veias no pescoço pulam acintosamente. A dama de copas cospe morangos tenros e grandes por cima da mesa e seus olhos ficam grandes e estáticos. Suas mãos delicadas grudam na toalha vermelho tomate. O vestido adquire vida e enrosca-se com a cauda de tecido da mesa. A esposa sorri. Alexandre expressa desprezo em sua feição. A pele da dama é vermelha, seu rosto é tal qual um rubi e seus olhos lilases. O cabelo emaranha-se com as rosas. É uma paisagem bela e ao mesmo tempo, grotesca. O piano esmiúça. Ela esta lá, congelada em meio à mutação, junto à mesa. Uma peça única.

- A conta senhor

O garçom se afasta. O homem abre a carteira e solta duas notas de cem sobre o prato com restos de comida.

- Boa noite, senhor Alexandre. Espero que tenha gostado.
- Sim, foi surpreendente.

“O bistrô estará de portas abertas”

“ Traga seu próprio galináceo da próxima vez.”

“ Venha morto de preferência senhor. Traga seu caixão”

“ Vista-se como homem na póroxima...”

Uma voz doce interrompe a escuridão:

- Pode abrir os olhos. Já terminamos. 

Uma psicanalista rabisca anotações num caderno pequeno, enquanto Alexandre veste o paletó e se levanta do divã.

- Me vi de muitas formas doutora, sinto-me sujo.

- Para despertar é necessário um lampejo de realidade, a percepção e aceitação de todos os medos e desejos que acumulou em sua existência.

- Minha esposa... Ela estava em minhas viagens.

- Eu percebi.

A doutora lhe entrega um pequeno livro vermelho.

- Este livro?

- “O método de 12 passos”, para transformar a percepção das pessoas. “O método” estabelece parâmetros para a dor da humanidade. Libertar-se da tirania dos desejos é não sofrer mais consigo. Contemplar de maneira desinteressada é puro olhar: O olho claro do mundo.

- Então, livre do desejo, posso fazer coisas que antes não tinha coragem? Posso mudar a realidade?

- Sim, livre do interesse pessoal e do eu individual, pode tocar o eterno que há por trás do transitório e vencer a dor.

Alexandre caminha até a porta, carregando o pequeno livro.

- Até semana que vem doutora. - Saúda com voz diminuta.

- Até, senhor Alexandre. Foi uma ótima primeira experiência.  

Ele deixa a sala, repleta de quadros e objetos disformes que adornam o ambiente sombrio. Atravessa o corredor de ombros encolhidos e cabisbaixo, passando pelos demais na sala de espera. Volta a sua casa apenas quando anoitece. Ao invés de usar a chave, bate com o punho cerrado na porta. Ao se abrir, ele entra sorrindo, um sorriso mórbido que faz a esposa congelar de medo. Algo está diferente naquele homem.

- Voltou – Diz a esposa com uma voz arrastada e rouca. - Onde estava? Conseguiu alguma coisa na rua? Responde seu infeliz, vai continuar me ignorando? Seu frouxo.

Alexandre avança por cima da esposa. Sem tirar os olhos de seu rosto, ele a faz caminhar para trás, em direção a parede.

- Que foi seu frouxo? Resolveu fazer alguma coisa? Saia daqui.

Ele a segura pelas mãos. Empurra a mulher na parede.

- Sim... Eu vou fazer alguma coisa. Sabe... É uma questão de percepção. Você não acha?

- Espera... Espera... Quem você pensa que é?

Alexandre usa as mãos para amassar a face pálida na parede fria.

- Eu sou a realidade, querida! E você... Você é só mobília!

Alexandre dorme no sofá enrolado com um velho cobertor. Na parede de trás, sua esposa, pintada com tinta a óleo, presa em um quadro. O rosto pincelado expressa grande pavor. Eternizada, adorna a pequena e confortável sala.


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