quarta-feira, 23 de março de 2011



- Verifique também a possibilidade de jogarmos mantimentos extras para estas criaturas, Douglas.

O velho assistente Douglas Matrato apertou a fivela de arame da gaiola de patos e a ergueu com grande esforço na traseira da caminhonete.

- Madame Rita Rica Sá aguarda-nos, pontualmente, para as dezoito horas.

A camisa pólo do velho assistente, em listras azuis e amarelas, agarrou-se de tal forma à gaiola que se desfez quase por completo quando a estrutura quicou na borracha do veiculo. O psicoterapeuta Marcus Bono Pino, formando da turma de 58 na universidade Bobone, com três de quatro citações possíveis no quadro de prodígios mantido pela instituição, levou três dedos finos e brilhosos à frente de sua boca. Emitiu um estalo agudo que por toda sua vida foi o máximo de que poderia expressar numa risada.

- Vai ter sopa?

O doutor girou a aba do seu panamá e bateu a ponta da bengala no chão, arremessando três pedrinhas em seqüência, razoavelmente longe.

- Mas obviamente teremos sopa, caviar, lagosta e mais. Exceto pato, definitivamente não os teremos. Não mencione patos, não discuta patos, não aluda a patos, não cheire a pato, não se movimente como pato.

O velho fechou a tampa e fungou suas axilas.

- Impossível não cheirar igual a estas aves depois de carregar mais de trinta gaiolas. Passemos em casa e tomarei uma ducha.

- É compatível – Respondeu o doutor conferindo seu Dumont. 

Dezoito horas na mansão da Madame Rita Rica Sá. A construção de ares coloniais, isolada da vizinhança por metros e metros de um jardim bem podado e diversificado, ladeado por dois caminhos de pedra mármore, um rústico para veículos e outro polido, para elegantes passeios ou saídas furtivas para a cidade. Postes de ferro se multiplicavam em tamanhos diversos para sustentar os globos de iluminação, alternando a luz até a entrada principal.  

“Pim, Pim, Póm, Póm, Póm, Pim”. 

Soou a campainha.

Abriu a porta um homem baixo e careca, vestido num puído casaco de camurça, um jornal debaixo do braço e careta de poucos amigos.

- Boa noite.

- Doutor Marcus Bono Pino, psicoterapeuta cinco estrelas.

- Boa noite e até breve, doutor.

O pequeno homem caiu ligeiro pela esquerda, tão rápido quanto à seca saudação, abandonando o psicoterapeuta cinco estrelas e seu assistente. Prontamente o “ploc, ploc” dos saltos da Madame Rita chegaram até a entrada.

- Doutor, que prazer recebê-lo em minha humilde residência. Como me foi instruído, dispensei Weberklein, o mordomo, que acaba de passar por vossa pessoa. Também liberei as demais criadagens, Alzira, a cozinheira, Almir Cavalo, o jardineiro e Toloco, o meu descanso de pernas.

- Perfeito, minha cara Rica.

Atravessaram em marcha imperial por dois extensos corredores ornados por quadros de Miró e Cavalcanti. As portas, coadjuvantes do trajeto, todas elas cerradas e rotuladas com pequenas placas, advertiam que “Esta noite é a noite da superação”. Por fim, despontou a sala de jantar.

À meia luz de candelabros italianos, a mesa de vidro retangular coberta por um delicado linho de cor vermelha, os pratos de porcelana grega repetiam o padrão de pintura, três damas segurando ramalhetes de açucena num campo verde, esperando a sopa, a salada ou a carne. As panelas de bronze também já dispostas liberavam o aroma da culinária. Sem os serviçais, cada um colheu o seu bocado entre variadas opções. Doutor Marcus rodeou o tablado servindo o cabernet sauvignon.  

- Quando quiser doutor, estou preparada para a parte pratica.

Na saleta da lareira, doutor Marcus Bono Pino riscou o terceiro fósforo para dar continuidade à brasa de seu cubano.

- Ao assinar este documento, madame, estará concordando com o procedimento psicoterápico que empreenderemos nesta noite. Estará sujeita a todas as metodologias que aplicarei.

Ela apertou o vestido violeta e sentou-se com os quadris largos no braço da poltrona oposta ao psicoterapeuta.

- Confio em todo seu histórico de curas. Confio em teus altos custos. E me entrego, apesar do terror que me toma às suas experiências.

- Veja bem, o que farei aqui é altamente experimental. Acredito que tua aversão seja, talvez, a mais ficcional que já lidei. Não existem, até o momento, registros ou estudos profissionais de tua desordem. Acredito que a madame está sendo induzida pela fantasia de um escritor, um desenhista qualquer, que tenha feito alusão ao tema e este passou pelos seus olhos de forma galopante. Cá estamos para trazer-te ao mundo real.

O doutor espremeu o charuto no cinzeiro de pedra e caminhou para fora da saleta, parando na porta ao lado de seu assistente.

- Confronte, sem agressividade. Confie em si mesma. Você é forte e nada vai te abater. Fique em teu quarto até as vinte e duas horas. Saia e ande por toda a casa, ou até onde puder ou ter vontade. Vemos-nos às oito da manhã. Não se esqueça dos exercícios de respiração.

A mansão, em contagem regressiva para as dez horas da noite, recepcionou a marcha de patos desengonçados, que o velho assistente Douglas Matrato desembocou pela porta da dispensa.  

- Vamos topetudos, entrando, entrando. Patinho, patão, pata, patona.

E “quá, quá” pra lá e pra cá. “Quá, quá”, entrou casa adentro. Grasnaram cada vez mais alto os patos do mato.

Numa guarita, da entrada próxima ao portão, o psicoterapeuta, doutor Marcus Bono Pino montou guarda e observou de binóculos as janelas amplas da casa. Dez horas badalaram. Madame Rita Rica Sá calçou sua pantufa de veludo e apertou a cinta de seda da camisola púrpura. Respirou fundo e abriu a porta.

Douglas lançava por todo o andar debaixo punhados de insetos, moluscos, peixinhos, e grãos. Bateu os braços, curvado ao chão e os patos trombaram uns nos outros e nas paredes, desordenados, sempre adiante. Pedaços de batata no pé da escada. Dez horas e dez minutos, era hora de cair fora.

- Os procedimentos foram executados?

- Certamente, doutor.

- Fechou a porta da dispensa?

- Esqueci, doutor.

Doutor Marcus espremeu as linhas de sua testa e Douglas girou os dedos impaciente, ciente de sua falta.

- Volto lá?

- Não, deixe. Estarão os patos distraídos com a comida.

Deixados os patos e a comida, restou a madame Rita apalpando o corrimão com as palmas suadas. “Flap, flap”, ela escutava logo abaixo.

- Asas. Deus, o ruído de asas.

O coração da balzaquiana trotou ligeiro, vibrando sua garganta. A respiração soprou na boca seca. E pequeninos olhos negros como caroço de mamão despontaram no último degrau. A madame soltou um tonificado “Úúú” pela boca, recostando-se na parede. O pato mascava meia carcaça de peixe.

- Olhando minhas pernas. Maldito a olhar minhas pernas.

Ela contorceu-se, os nervos paralisados. Inspirou e expirou. Lembrou das inúmeras passagens pelo consultório do terapeuta, o plano para um confronto cara a cara com o motivo de sua fobia.

- Hoje ou nunca. Vamos lá, Rita Rica Sá.  

Deu quatro passos e pulou direto ao quinto degrau da escadaria. Infelizmente escorregou em um agrupamento maligno de mexilhões. O desbunde acabou já no corredor térreo, atiçando cinco topetudos que esvoaçaram como puderam para não serem esmagados. Rita, de face amarela, ergueu-se levando alternadamente um pulso e logo o outro pulso em direção a testa.

- Ai de mim. Não consigo mais. A dor, o horror.

O horror, logo o panorama do inferno grafou-se em sua frente, por todo o lado. Patos, patos e mais patos. “Quá, quá, quá”. O grito alcançou a guarita e despertou o doutor Marcus e seu velho assistente Douglas Matrato.

- Opa, começou. Opa, vamos lá.

- Doutor, como faremos?

- Não faremos nada até as oito da manhã. E já fomos pagos. E mais do que todo este trabalhão, teria que cobrar mais e a mulher está falindo, com seus quadros e toda sua gordura.

Posto que o doutor nada fizesse, Rita afogou-se num ataque de pânico. Gritou e correu como os próprios patos do mato, selvagem e balançando seus pés desengonçadamente com o veludo fino das pantufas resvalando nos bicos duros e sujos dos bichos.

- Vencendo a anatidaefobia, vencendo a ornitofobia. Eu estou! Eu estou!

Louca, com os olhos de caroço de mamão por baixo de sua camisola, tentando conquistar suas coxas. Sentiu a primeira bicada, um belisco leve e o grasnar da vitória dos patos. “Quá, quá, quá”!

- Ainda não!

Chutou a bunda de três patos retardatários que se empanturravam com milho, derrubou dois Miró e quatro Di Cavalcanti. Finalmente, esbaforida, cruzou a sala de jantar e deitou na mesa de vidro. Caiu a louça grega no chão, coisa que irritou os patos. “Quá, quá, quá,quá,quá”.  

- Socorro, doutor Marcus. Socorro, bom doutor.

A súplica chegou redonda na guarita e prontamente Douglas levantou-se.

- O que está fazendo, meu velho?

- Oras, não ouviu?

- Ouvi algo que faz parte dos tratamentos mais ousados e bem sucedidos. Continue o pife. Vamos, meu velho.

Os patos abriram um semi-circulo ao redor da mesa e interromperam a nojenta refeição no meio da bagunça. Madame Rita deslizou na mesa encharcada com abundante suor, ao tentar se por de pé. Ouviu então um grasno cavernoso e mais outro e outro. Saltaram das estantes de cristais, os patos mutantes, medonhos, gigantescos.

Os patos gordos, que alimentam grandes famílias, saltaram com suas carecas vermelhas e o peito explodindo em um marrom opaco. Caíram em pares na mesa de vidro. O pranchão, tão grosso, não suportou o bombardeio e partiu-se em quatro, levando ao chão estilhaços, Rita e os patos gigantes, suculentos, mutantes. “Ao ataque” diziam aqueles olhinhos diferentes, azulados, craquelados.

- Cruzes! Santo Antão.

Rita Rica Sá teleportou-se da sala de jantar, com cortes por todo o corpo, descabelada, espavorida. Como um trem bala, zuniu na cozinha e agarrou o primeiro cutelo pendurado ao lado dos famosos salames da colônia de Witmarsum.

- Desgraça fedida.

Varava o vácuo, tilintando em panelas. Com pequenos avanços, patos loucos foram golpeados e sucumbiram por cima de batatas e temperos. Penas duras salpicaram o campo de batalha.

- Vencendo a anatidaefobia, vencendo a ornitofobia. Eu estou! Eu estou!

A grande pata choca, enfurecida com a morte de seus amantes, galgou até os peitos da Madame louca e os buzinou com um bico voraz. As unhas de Rita, esmaltadas em rosa grená, estrangularam o pescoço da ave e esta borbulhou vestígios de ração até o último grasnopiro, o derradeiro suspiro dos patos amaldiçoados.  

Já em frangalhos, o medo corrosivo das criaturas destrambelhadas, deu lugar ao ódio, a fúria, a coragem de uma mulher posta em grande perigo mental. Agarrou o pequeno botijão de uma lamparina empoeirada e riscou o cabeçote do fósforo. A mulher e sua tocha, endemoniada pela casa, soltando os lampejos do bafo do capeta nas penugens do caminho. A luz do fogo destacou-se nas janelas e a silhueta chamou a atenção dos vigias.

- Esplêndido, Douglas. Como uma pintura em um churrasco caipira. A mulher finalmente assumiu o comando.

Oito horas da manhã. O psicoterapeuta Marcus Bono Pino encaixou o chapéu panamá e flutuou como um lorde até a dispensa da mansão. Douglas saiu de dentro da casa e reportou a situação.

- As paredes chamuscadas, a tapeçaria em frangalhos. Objetos inúmeros, em cacos. Incrivelmente, todos os pobres patos mortos. Alguns varados por flechas, outros tostados, decepados, retorcidos, pisoteados, depenados, alguns pendurados e torturados com grampos. Na cozinha, há um pato com ervas e batatas, parcialmente cozido.

O doutor espargiu sua risada afetada de um só estalo. Bengalou três pedrinhas no chão e ergueu uma samambaia que estava caída na saída da dispensa.

- E aqui está a corajosa, a vencedora, madame Rita Rica Sá. Descansando em sua glória.

Rita afastou o cabelo de seus olhos e sorriu com dentes trincados. Douglas empunhou o braço vermelho dela e endireitou-a de pé.

- Parabéns, madame. O caminho era de pedra e você foi uma das poucas a traçá-lo.

Ela piscou inúmeras vezes antes de se pronunciar.

- Patos, patos, patos. Adeus patos. Adeus doutor. Curou-me. Recomendo-te. Teu custo alto me salvou. Recomendo-te. Melhor não há. Patos, patos, patos. Melhor não há. 

Com uma gorda gorjeta em mãos, o velho assistente Douglas deu a partida na caminhonete. O psicoterapeuta  satisfeito, bocejou sonolento. E a madame, ela espalhou aos quatro ventos sobre os bons serviços prestados. Dizia sempre, no chá da tarde, em meio à reforma da mansão, para seletas amigas.

- Não se afobem em manias, não se percam em fobias. Ele é bom e eu recomendo. Quer mais uma fatia, Blavatsky?


***

terça-feira, 15 de março de 2011

Sem muita esperança passo em volta da praça Charles Bauder a procura de um almoço razoável e um local que atenda as necessidades do meu dia-a-dia. Junto-me a um banco de cimento  e fico a admirar as crianças que correm felizes em volta das arvores. As pessoas que caminham apressadas na rua, sem contemplar a paisagem agradável.

Pequenos círculos de grama, arvores de tronco largo, lirios do vento chacoalhando as pontas finas, legiões de formigas enfileiradas, carregando lascas de pão. No começo de uma primavera florida, todas as aves cantam  boas-vindas a natureza local. Natureza esta, emaranhada entre prédios de arquitetura moderna, arrojados e imponentes. E eu não poderei nunca alcança-los, mesmo se retornar ao vigor da juventude.

Invade-me uma nostalgia grande. Recordo da infância ao redor de praças inda maiores, sem entender o porquê de sempre ser levado para estes lugares, ás vezes sozinho, ás vezes em grupo, cheirando ao orvalho da manhã. Mas aqui é diferente, a paisagem me olha como uma brincalhona. Alguns velhos, jogam uma partida de xadrez, me dividem um lanche, como numa confraternização.

É tudo quase perfeito, se não fossem as pessoas que cruzam a praça, em ternos alinhados e vestidos ornados, indo ao trabalho como, aos meus olhos, grandes manchas cinzentas, deturpando uma perfeita harmonia. Homens e mulheres que me encaram com um olhar invejoso, raivoso.

Encostado na arvore ao lado de uma passarela, recuo com medo destes homens e mulheres que blasfemam contra mim, sem motivo aparente. Meu espanto é enorme, pois nada fiz que não seja normal. Ninguém, além destas manchas cinzentas e apressadas, se incomoda com minha presença. Sou apenas mais um. Finjo indiferença enquanto mordo mais um pedaço do meu lanche de ameixas, cedido aos tecos pelos velhos, este que me agulha em cólicas leves, tenho intestino meio solto. 

M - Que horror! Nojo, nojo, ai ai...

H - Cagão maldito! Meu terno novo. Essa laia, emporcalhando a  passagem.

M - Ai! Que nojo...

H - Como vou pro serviço deste jeito?

M - E eu? E eu?

Que gentinha desajustada ! Não ficarei a ouvir tamanha calunia a meu respeito. E mesmo porque,  estou mal do estomago, péssimo. Acho que terei que passar depressa pela praça para, realmente, evitar um embaraço. Eu não vou agüentar.

"Ui"

O pipoqueiro também esta a me xingar. Oras, disfarço bem um peidinho, dois. A expressão é das melhores. As crianças, elas correm e gritam até as suas mães. Onde está a bela harmonia? Onde está a brisa perfumada? O quê fizeram com o chão? Tudo vira uma tragédia. A praça cheira mal e as pessoas escorregam em algo sujo. Também quero sair.

"Ui"

Vou-me embora, vou voando de tão rápido.

"Ui"

Atrás de mim, os homens, as mulheres, os velhos, as crianças, à gritar:

– Maldito! Pombo maldito.

- Pombo sujo! Seu, seu, seu p o o o o m m m b o o o o o...

E eu, cada vez mais longe, cada vez mais longe.

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