segunda-feira, 11 de julho de 2011

Não há satisfação em enforcar um homem que não faz objeção a isso.
George Bernard Shaw
 
 
“Primeiro precisamos lhe arranjar um grande e trágico acidente, um embate, um duelo, uma fatalidade, então poremos tua perna à prova. Corto-lhe com machado afiado e então detalhamos como será sua história. É razoável que a perna passe por um processo infeccioso e se inutilize ao longo do tempo, mas é melhor que ela seja comida, arrancada, triturada, amaldiçoada, explodida ou catapultada. Veja bem, velho pernicioso, uma perna de pau impõe respeito somente se houver uma história que valha a pena ser contada por trás da madeira lustrada.

Conhecido é o simbolismo, o temor provocado nos inimigos, o respeito que inspira os amigos, a sensualidade que evoca nas mulheres o mais profundo e salivante desejo de roçar a tua perna de pau. Pagar-te-ão em rum para ouvir teu conto trágico e audaz. Circundarão tua pessoa para admirar a peça. Que espera para que lhe partamos este osso não profícuo que lhe dói por todo o inverno? Tantos anos saqueando deslumbrantes tesouros, pilhando mercantes asiáticos, perfurando com tua espada o peito dos timoneiros, agora que tua barba roça tua barriga entre fiapos grisalhos e sujos, já não é a hora de mais valia para presentear-te com está madeira tão bela quanto uma preciosidade de ourives?
Se precisar de exemplos dos préstimos que minha pessoa já executou, nestes anos acalantes, lembre da imagem pomposa que o pirata Tunus Albacaris construiu perante a corte aduaneira do Rei Vermelho, penetrando o castelo real com perna de pau e pistola de pavio curto. Não podemos negar que a história fez jus a esta imagem, mesmo que a guilhotina tenha aparado o pescoço de Tunus tão logo foi capturado. Quem poderá dizer que não valeu a pena ser assunto nas classes abastadas? Tome nota também da vida de meu primeiro cliente, pirata Mero das Elipses, o louco dos canhões. Exigiu que sua perna de pau pudesse armazenar pólvora, assim foi feito, como não? Você já se lembrou desta legenda? Muito difundida, de fato. Explodiu-se bravamente contra uma turba de motim. Épico, meu amigo, épico.

Posso aceitar rublos. E definitivamente me interessa a coleção de sestércios, no entanto, adiciono duas tiras de couro no toco inferior se acrescentar esta bolsa de ervas que carrega a tira colo, me é útil nas questões salutares. Negociados estamos por setecentos e trinta rublos, quarenta e três sestércios e um punhado das ervas aromáticas. É menos do que costumeiramente é acordado entre minha família de clientes, mas, como estava tu numa dúvida cruel, deixo a bonança em seu bolso para que volte e experimente muito mais que tenho a oferecer.
 
Repare, é aqui que farei a incisão. Beba rum, mas é claro. A bebida da casa é à vontade. O torpe é lucidez para tão árduo trabalho; e assim tu mal sentirás o tranco. Mastigue este pedaço de estopa, pois a pressão pode subir inquietante até a tua testa e transformar-se em uma dor sibilante. Seja como for, é passageira. As agruras que precedem uma vida de glória e importância, são nada menos que mais história para uma rica coleção. Já prepara logo teu barco, pense só, mire bem tua próxima pilhagem, escolha a dedo teus homens e Deus te proteja da cabeça da serpente do mar. Observe como puxo este osso, que não é nada que uma picada no nervo.

Recoste-se e troque a estopa. Mais rum e mais um tranco, te garanto, olhe só, aqui jaz tua ex-perna que de tão comum, nada lhe trouxe de bom. Tão rápido que foi, concorda? Mas é normal teu suor, tua tremedeira. A brasa do carvão vai estancar a abertura. O barulho te aflige? Não se incomode, é como um porco tostando, tomo extrema precaução, fique sossegado. Pus meu dedo e já nada sentiu, percebe? É hora de cravar o taco. Só mais um tranco, o laço nas cores que escolheu é de muito bom gosto. O couro se expandirá com o tempo, o que sente de aperto é pura impressão. O repuxo ocorrerá nos primeiros dias. Um pouco de força, agora. Estrala a madeira por conta da pressão, de outra forma não poderia ser.

Que tal? Gostou? Parece bem reta. A dor é mais do que normal, necessária até, eu diria. Orgulhe-se, que este modelo é novo. Jamais servi tão bem um cliente. Caso queira, faço com que esta perna de pau seja exclusiva, jogando o molde fora. Quanta honra e boa sorte, concorda? O que passa? Machucou-se? Foi só um pequeno tombo, ajudo-o e lhe ofereço esta muleta. Peço-te perdão pela falta, sempre é bom repousar em muleta por um mês. Não se invoque com as farpas, pense nelas como uma coroa. Sim, é normal o negrume da carne.
 
Concordo, é estranho no começo, mas é satisfatório em longo prazo. Um bom dia eu lhe ofereço, velho pirata. Vejo a satisfação em teu rosto. O quê? Na estante? Cobiça já minhas mãos de gancho? Pura prataria bem encurvada. Já podemos pensar num molde para mais adiante. Imagine a completitude de uma perna de pau, uma mão de gancho e quem sabe, juntando ouro, um belo olho de vidro! Adeus, pirata. Um bravo sempre tem olhos acurados, portanto aguardo teu retorno. Não, não reproduzo cicatrizes. Infelizmente. Há de conquistá-las por si só, concorda? Tome aqui, leve como presente, esta garrafa de rum.”  
 
 
 


3 comentários:

Rebeca Youssef disse...

Você escreve como quem fala. Gosto disso.

www.tavernademary.blogspot.com

Sérgio Ferrari disse...

Obrigado, Rebeca!

Pedro Moreno disse...

Excelente!

 

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