sábado, 25 de junho de 2011

- Aos doze anos, lembro bem. Aos doze anos brincava com meu primo de pau e pedra! Uma guerra muito particular e divertida que travávamos todas as tardes após a escola. Pulávamos o cercado irregular de um terreno baldio e nos batizávamos com nomes de guerra. Na maioria das vezes eu me nomeava Sir Moto Hansen! Na época o herói favorito de todos os garotos.

- E seu primo? Tinha alguma personagem predileta?

- Ah sim. Ele tinha. Meu primo era Caravana Azul. Um antagonista poderoso dos gibis. Posso até dizer, que ele não variava sua personagem, era sempre Caravana Azul. Eu mudava conforme as influências que a Tv me passava no fim de semana.

- Mas Sir Moto Hansen era a maior constante!

- Sim... Era.

- Achei curioso o fato de você começar sua narrativa justamente aos doze anos...

- É... É...Tem razão. Mas é minha primeira lembrança mais viva...

- Prossiga a partir deste ponto, Sr. Petardo.

- Claro... Eu era um gordinho de duas dobras na barriga. Coisa da genética do meu pai. Mas além da propensão familiar eu fui criado com liberdade degustativa. Não havia inocência em meus bolsos, sempre abastecidos com guloseimas. Em especial, caramelos.

- Seu pai e sua mãe tinham problemas conjugais aparentes?

- Não posso afirmar com certeza, mas até minha adolescência não presenciei cenas familiares neste sentido. No mais, alguma discussão sobre os desatinos do trivial.

- Que bom! Posso afirmar que isso refletiu em seu comportamento dócil naquela idade?

- Se a influencia externa for algo tão determinante no comportamento das pessoas, pode afirmar isso.

- Prossiga a partir de um dia marcante dos seus doze anos.

- Da última brincadeira envolvendo Sir Moto Hansen e Caravana Azul. Estávamos a caminho do terreno baldio, a duas quadras da nossa rua. Meu primo e eu morávamos um ao lado do outro. Nossas famílias constantemente confraternizavam. Das crianças que nos acompanhavam neste dia, lembro do nome de apenas duas, Marcos e Toni. Contando eu, Caravana, Marcos e Toni, havia mais quatro garotos.

- Você se referiu ao seu primo como Caravana. Por quê?

- Ah... Ele não admitia outra nomenclatura num dia de brincadeira.

- Seu primo é, hoje, um homem de que tipo? Descreva-o.

- Doutor... Meu primo morreu naquela última noite, em que brincávamos no terreno baldio.

- Hummm. Sr. Petardo, por favor, narre todos os detalhes dessa noite. Abra sua mente.

- Caravana Azul estava empolgado para aquele final de tarde. Cada um de nós tinha algum brinquedo debaixo dos braços. Eu levava a bola de capotão, costurada por minha avó diversas vezes. Caravana trazia um embrulho comprido amarrado a cintura e guardava muito segredo sobre ele. Claro que, eu e os outros garotos, o rodeávamos e riamos das nossas provocações a respeito do objeto misterioso.

- E os pais de todos estavam cientes deste encontro?

- Estavam e não estavam. Era só um encontro de turminha. Era super normal.

- Prossiga.

- Eu amarrei uma capa, feita de um pedaço velho de lona de caminhão no pescoço e transformei-me em Sir Moto Hansen. Nos espalhamos pelo terreno baldio. A brincadeira da vez era esconde-esconde.

- Mas, Sr. Petardo, um terreno baldio fornecia bons esconderijos? Pois afinal, você disse que era baldio. Algo próximo do desolado... Concorda?

- Ah sim, doutor. Mas havia restos de muitas coisas grandes. Tinha um tonel enorme e enferrujado. Uma tubulação de concreto parcialmente soterrado, a carcaça de um carro. Tinham duas arvores bem tortas também. E muitas moitas. Enfim, começamos o jogo. Só eu e Caravana tínhamos personagens definidos. Acho que por isso tínhamos mais ímpeto. Meio que controlávamos a brincadeira da galera. Saí em disparada e pulei na boca do cano semi-soterrado, neste dia. E os demais se espalharam. Num misto de pega-pega com pique esconde.

- E seu primo, Sr. Petardo? Onde ele se escondeu?

- Ele trepou numa das arvores tortas. Ele era bem hábil e esguio.

- Ah, ele era sim.

- Como disse, doutor?

- Prossiga, prossiga.

- Bom... Estava eu, perfeitamente resguardado, segurando a risada. Quando empunhei a bola que havia trazido e rapidamente a arremessei na cabeça de Marcos. Ai, ai, como foi hilário. Acertei em cheio na moringa. O garoto ficou todo desnorteado. Fiquei surpreso pelo choro.

- Então você atacou com força... Foi sujo e desleal.

- Como assim, Doutor?

- Típico de um gordinho preso numa capa, configurando um quadro ridículo.

- Com mil perdões, Senhor Lima, mas como chegou a tal ignomínia para com minha pessoa? Sei que a proposta da terapia é um discorrer aberto e sincero, no entanto, creio que o “aberto” e o “sincero” têm de partir do paciente, correto?

- Não se detenha em minhas observações, Senhor Petardo. Prossiga, prossiga.

- Mas... Ah... Eu... Eu... É o seguinte... A partir dessa bolada, Marcos foi embora. E levou os outros dois garotos consigo. Ele tinha um videogame. Pobre imbecil.

- Videogame que você desfrutava constantemente... Egoisticamente. E não o dividia com os outros.
- Como sabe?

- Estou errado?

- Não... Mil desculpas.

- Esqueça as brincadeiras. Diga, como seu primo morreu?

- Nós tínhamos brincadeiras bem estúpidas... Mas éramos jovens e...

- Pare com embolações, seu idiota. COMO SEU PRIMO MORREU?

- SAÍ CORRENDO DO CANO, PEGUEI A BOLA E A CHUTEI NA ARVORE DE CARAVANA.

- Por que fez isso?

- Porque Sir Moto Hansen... PERDIA SEMPRE!

- PERDIA O QUÊ?

- SEU BASTARDO! PERDIA O DESAFIO SUPREMO!

- Ah... Hum... Entendo. No que consistia este desafio?

- Cada um devia subir numa das duas arvores tortas e bradar seu lema. E o gordinho não conseguia subir... Jamais!

- Por que não mudou o desafio?

- O desgraçado do Caravana, covarde, disse que heróis têm que honrar os compromissos até o fim da vida.

- COMO ELE MORREU? VOCÊ CHUTOU A BOLA E ENTÃO?

- Eu o derrubei da arvore no momento em que ele bradava seu lema.

- Não precisa chorar.

- CALE A BOCA!

- “Eu sou Caravana Azul, seu terror!”.

- Como disse?

- “Eu sou Caravana Azul, seu terror!”.

- Caravana?

- Sim, Sir Moto Hansen.

- Bastardo, filho do cão. Desgraçado! Que tua alma apodreça.

- PENSOU QUE HAVIA DESTRUIDO O MAGNÂNIMO?

- VOCÊ ARRUINOU MINHA VIDA! MORRA! MORRA!

- AFASTE-SE, HANSEN.

- SOFRA, CARAVANA.

- CUIDADO! NÃO O FAÇA!

- É minha vez de bradar o lema. Vencerei você.

- NÃO! Sr. PETARDO! Desça da janela...

- “Oh, nada tema! Sir Moto Hansen é a força extrema”

- NÃO, PELO AMOR DE DEUS, Sr. PETARDO, NÃO ENCOSTE AÍ QUE A JANELA ESTÁ...

- AHÁ, ser bufante e perdedor. Te derrotei no derradeiro encont... AAAAAAA...

- ABERTA!
******
 
- O senhor quer dizer que ele caiu do oitavo andar ao perder o equilíbrio?

- Exato meritíssimo. Interpretando um personagem dos quadrinhos. Sir Moto Hansen.

- Eu lia estes gibis.

- Então, meritíssimo, ele se exaltou, pois dei a entender que era Caravana Azul.

- Eu lia este também.

- E Caravana era seu primo falecido.

- Por que o fez, se era uma farsa? Não chore!

- Queria aflorar a emoção reprimida dele.

- A emoção reprimida?

- Sim, a emoção reprimida.

- Culpado... Culpado... Culpado.
 

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