terça-feira, 5 de outubro de 2010


“Lindo meu amor. Continue girando, isso, suavemente. Que sol lindo esta por trás de ti. Continue rodando”.

Sandro Menetti está na tomada final de seu curta-metragem. Sua moderna câmera digital capta movimentos ensaiados de Mariana, a musa inspiradora.

“Dê vida à personagem, minha linda. Deixe esvoaçar seu vestido”.

Em uma tomada de câmera debaixo para cima, Sandro Menetti sente o baque seco na cabeça. Sua espinha treme e a visão começa a escurecer. A musa grita e ele a observa pela câmera, numa imagem turva entremeada pela ponta de seus dedos.

“Ah, mas que êxtase na maravilhosa Mariana”.

- Solta logo essa merda, caralho!

Jubilo Demotape corre. Corre deslumbrado com o fruto de seu roubo. Está muito chapado para desviar da musa aterrorizada e a derruba violentamente no asfalto. Ele cruza o parque com a câmera ligada...

Nós vamos com ele. 

VINTEQUATROHORAS
ININTERRUPTAS 
DEDROGAS

QUEM É O CARA?

Jubilo Demotape é a pária do subúrbio. Aos dezoito anos, declarou-se filho legitimo do underground. Freqüentador de festas pervertidas, no centro velho da cidade. Casas de swingue, labirintos homossexuais, raves regadas a LSD, Heroína e maconha. Aos vinte anos conheceu um franco-português mais pirado que ele. Beni Chermont, anarquista burguês, bicho-grilo de universidade publica, filósofo recalcitrante.

- Que puta festa! Que som do caralho é esse?

-  A massage to your brain.

Jubilo tornara-se fanático pelas batidas eletrônicas e aceleradas. Dançava freneticamente. O corpo balançava de um lado ao outro, trombando nas pessoas e objetos ao redor. Não tinha pai, nem mãe. Não tinha parentes, não tinha casa. Vivia de pequenos furtos. Ele não tinha ambição, não tinha inteligência... E continua não tendo.

LENTE OBJETIVA

Jubilo corre. Encosta o visor da câmera no olho direito e continua a descarrilar. A imagem tremida retrata os transeuntes, os carros, a fumaça e na maior parte do tempo o chão. Pequeninos picotes de grama esvoaçando, purê de cachorro quente, jornal amarelado, chiclete rosa, chiclete verde, chiclete cinza. Bosta de cachorro, corrosivo rastro de pombo. Ponta dos pés, sarjeta, asfalto, calçada, sarjeta, asfalto, grama, grama, grama.

- Toma no cu filho da puta. Vêm comigo assistir meu curta. Curta do caralho.

Algodão doce, garota assustada, óculos de sol. Cooper de sunga, raquete de tênis, fonte, arvore. Grama, grama, grama. Jubilo Demotape urina no banheiro publico, na parede do lado de fora, tentando enquadrar a cabeça de seu pênis com a câmera.

- Ei desgraçado, para com essa merda. Filho da puta.

- Vai se fuder! 

Jubilo recomeça a corrida, filmando o velho que está lhe xingando. Corre com as calças ainda arriadas nas coxas. O visor no olho direito. Salivando, resmungando, tremelicando.
As imagens são indefinidas, vultos coloridos e trêmulos. Jubilo contorna a fonte e derruba com o ombro esquerdo um carrinho de pipoca.

- Vai ficar foda o meu curta. Vai ficar cavalar!

Grama, sarjeta, portão, asfalto. Sarjeta, calçada, chiclete, poeira, papel, comida, baratas, muitas baratas.

Ele entra em um bueiro semi-aberto nos fundos de um conjunto habitacional. Caminha no lodo sujo e fétido até um cubículo no fim de uma das ramificações do esgoto. Lampiões dão luz àquele local sombrio. Mais duas pessoas estão sentadas em caixotes de verdura.

A COLEÇÃO DE DROGAS DO TEX

-Demorou, ô cusão.

-Vão se fuder. Consegui a porra de uma câmera.

-Se a gente morrer, vai estar tudo documentado.

Os três ajeitaram-se envolta da mesa de tijolos e Tex abriu um saco de lixo, despejando seu conteúdo na superfície.

-Porra, Tex. Tem um braço do lado da sua perna. Que caralho é esse?

A luz do lampião rebate um corpo putrefato, espremido no canto do cubículo. Metade da carcaça esta afundada na lama, coberta de pequenos ratos, passeando e mordiscando a carne.

- Se liga, Jubilo. Esse é o meu irmão. Ele veio há três dias aplicar uma dose e capotou aqui no chão. 

-Puta merda que massa. Espero ficar assim, sinistrão.

Jubilo Demotape aproxima a câmera até o cadáver do irmão de Tex, cutucando os ratos com a bota.

-Senta ai, porra!

-Senhores. Prontos?

-Manda bala. O que vai ser primeiro?

Tex Boniclaide é o fármaco da galera. Debaixo de seus blusões de tricô, sempre um tubo de entorpecente, uma bucha de intoxicação. Loucura a pronta entrega. Sem custos, só pela amizade, pelo acesso fácil, pelo reconhecimento.

-Estimulo, depressão, alucinação, perturbação. Vamos endoidar.

Valium com cerveja. Lexotan com água mineral. Heroína na veia. Metanfetamina goela abaixo, na seca. Cocaína na fungada, esfrega na gengiva. Haxixe e fumaça. Quadradinho de LSD, debaixo da língua. Mescalina em conta gotas. Ecstasy e pirulito. Litro de vodka sem gelo. Água mineral, água, água.

COMPORTAMENTAL

Beni ergue a cabeça e assopra para o alto. Tex senta sobre o cadáver do irmão e Jubilo dança sua musica eletrônica imaginaria, agitando energicamente braços e pernas. O que um médico chamaria de quadro clinico, eles chamam de experimento. Náuseas e tremores acompanham o suor abundante que escorre dos corpos. O pequeno beco de esgoto gira lentamente. A atenção ao que acontece é reduzida e a agressividade toma conta do olhar de cada um.

JUBILO

Esmurra as paredes e sorri por não sentir dor, por ter uma força extrema.

TEX

Experimenta uma sensação de leveza e prazer. É um homem poderoso e influente.

BENI

Suas roupas, do século XVIII, estão perfumadas. Cortesãs disputam seu colo. 

JUBILO

Aperta com força a câmera em uma das mãos. As ascensões descarregam energia na muralha de Berlim onde tanto sonha em ir.

BENI

Dá voltas pelos parques imperiais da china, esperando ser reconhecido pelos pombos como um nobre francês.

TEX
Apalpa as pernas de seu irmão morto, mas este reclama das mãos ásperas. Vomita diversas pedras de diamante esperando que o morto o perdoe por suas faltas.

JUBILO
- Parece metal retorcido que escorre pelas veias, que me impede de passar. Essa força magnífica, flui com fel pelo caminho. Este alfabeto estúpido, entupido, que me impede de passar, me impede de passar, me... passar... A substancia misturada preenchia as mentes, delírio vai, perturbação e confusão. O ar viciado esmagavas, esmagavas. Alfabeto estúpido, entupido, que me impede de passar, me impede de passar.

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FUGA

Correndo com sangue nas mãos, sangue na câmera, sangue nas roupas. Na cidade já escura. Jubilo Demotape ergue aos céus a cabeça de Tex. Filma em círculos a paisagem misógina daquele borrão deserto. Canta insultos, relembrando as batidas que tanto o completam de energia. Em sua cabeça, mil imagens do ontem e do amanhã. Não pode elucidar o que esta fazendo agora. A sua frente, cenas rápidas de Beni nu, mastigando cabeças de pombas e tijolos. Sangrando, com seus braços no estomago aberto, volvendo tijolos picados. Tex cavando o corpo do irmão, trocando de pele, trocando de lugar.
Jubilo está com o rosto branco de cocaína e corre mais pela noite. Gritando e filmando a cidade e suas visões. Ele pára seus passos para escutar as batidas violentas do coração. Olha abismado para o próprio peito. Há um buraco vazio por onde o vento passa assoviando. Dá voltas sem sentido pelo quarteirão. Os prédios estão mais altos do que o costume. Os becos mais claros e menos sujos. 

- Lá está o delinqüente.

A esguia forma humana contrasta com a parede de cartazes caóticos. No olho esquerdo uma câmera aponta para Sandro Menetti e na mão direita uma cabeça retorcida e ensangüentada pende horrivelmente. Os músculos tensos. Não há respiração, não há nada. O jovem diretor arrepende-se de ter chamado atenção daquele ser. A musa se esconde tremula por trás de Sandro. Os assistentes de produção estão reunidos em volta do diretor e apesar do numero superior, a visão do absurdo surreal de Jubilo, impede qualquer reação.
E o corpo medonho tomba rígido no meio-fio. E a madrugada acolhe mais uma alma perturbada. Jubilo Demotape não consegue retirar a membrana gosmenta que lhe envolve. O corpo é de gelatina, um choro compulsivo ataca. Num mundo desconfigurado, sem drogas, sem musica, sem nada que valha a pena contestar. Jubilo entrega, com a mão esticada no asfalto, uma câmera rachada, ensangüentada e com a bateria fraca.

***

Rolam os créditos finais na grande tela. O público aplaude com vacilo.

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