sábado, 11 de setembro de 2010


Cansada de esperar a passeata contornar o quarteirão onde morava, Croma Silvana levantou-se da escada de sua casa e pôs se a caminhar no meio do alarido da multidão. A temporada de festas em honra de Santo Pardinho do Abaluê estava em seu penúltimo dia e a caminhada tradicional de um milhão de passos carregava toda a população da cidade de Pardo até o ponto mais alto da região. Croma Silvana girava o dedão pelo gatilho de sua maquina e batia fotos a esmo dos muitos fiéis.

- Madre de Deus. Ó Madre de Deus. Ó Abaluê do Pardinho. Salve a fome do povo.

Dos gritos do negro esquálido, fizeram meia lua em volta do desvairado. Croma ergueu a câmera no buraco de corpos que conseguiu atravessar e saiu disparando. O negro tremeu o corpo e saracoteou como um possesso, pisava pé ante pé no contorno cada vez mais espaçado das pessoas.

- Ó Santo Pardinho. Dá-me um bocado de comida. EU me farto com um pouquinho.
A multidão debandou cascando de rir. Croma Silvana agachou na frente do negro esquálido e perguntou seu nome.
- Seráfico Bonfim. Trinta e oito de vida. Vinte de fome, pois foi com dezoito que larguei mão da boa sorte e sofri a passagem da fé. Dez anos de devoção. Foi quando encontrei o caminho da boa marcha de Santo Pardinho. Cinco anos de chão frio nas noites desse interior perdido do mundo de Deus. Três minutos do tempo que me humilhou o populacho e chegou você com teu cabelo de ouro.

Croma Silvana encantou-se com as palavras populares de Seráfico e seu discurso proeminente. Percebeu logo a importância folclórica de tal personagem.

- E diga tão sofrido projeto, por que deste forte grito em sua fala?
- Moça bela, parece alheia as minhas palavras, apesar de ter se aproximado gentilmente. Por acaso faltou clareza no meu anseio de fome? Pois é fome exatamente o meu protesto.
- Eu entendo Seráfico. Encantou-me seu desempenho teatral. Penso agora numa ponta de destino, pois ao meu passo curioso, no exato momento, te vi surgir neste canto.

Croma Silvana riu da estranha figura e girou seu gatilho novamente para disparar novas fotos. Seráfico Bonfim sorriu e ergueu-se de um pulo.

- E tem destino mais eficiente que fazer clamores no momento em que mais se apinha gente nessa romaria? Aproveito a oportunidade. Você mesmo, loura, viu que logo riram de meus modos.
- Vamos comigo até o fim da pequena jornada religiosa e de lá procuramos juntos algo para jantar. Que tal?
- Claro que sim. Aceito. Mas se pensa que eu paro de pé, como uma vara de pau, sem nem ao menos o café...
- Uma queijadinha na Dona Vera e podemos ir.

E foi-se Seráfico seguido por Croma. Ele abria caminho com facilidade pelos devotos, que evitavam a todo custo contato com o mendigo. Quarenta passos contados até a queijadinha. Alguns segundos para engolir três bolinhos.

- Então “doninha”, ainda me quer até o jantar?
- Não sei Senhor Seráfico. Trate-me respeitosamente e podemos chegar lá.

O negro espremeu os olhos e limpou os dedos engordurados na calça puída.

- Oxalá... Saiba que sou de paz.

E as horas do dia foram preenchidas por diversas atividades religiosas, supersticiosas e algumas esdrúxulas (quiçá todas fossem). No "clic" de sua fotografia, Croma Silvana registrava o máximo possível.

Um septuagenário deitou-se atrás da carroça de bois e segurando firmemente no laço que sobrava da traseira, foi-se arrastado, comendo poeira e cantando com a multidão

Uma mãe jovem, pele morena estilhaçada de sol, empurrava uma carriola com seus quatro filhos homens.

Um matuto esvaziara a garrafa de alambique em sua esposa.

O padre chibatava seus três pupilos. Um deles carregava Santa Madalena de Dias Plenos em gesso.

Outro que chibatava, era o suado dono do burro. Louco por continuar a caminhada, paralelo ao santo da festividade.
Quatro e meia da tarde e a íngreme escarpa já castigou o que pôde do povo crédulo. Pararam os padres, parou o bispo. Estacionou o santo.

- Sem a oração, nunca pode uma alma produzir bons frutos. Poderosos somos nós que aqui, a partir de agora, rezaremos.


“Mimimimimimi
Oh santo Pardinho perdoe-nos,
Mimimimimimimi
somos dignos. Oh Abaluê.
Mimimimimimimi
Mimimimimimimi
Na prata da casa.
Mimimimimimimi
Proteja-nos!
Mimimimimimimi
Misericórdia.
Mimimimimimimi
Estamos gratos.
Mimimimimimimi.
Amém!”.



Croma Silvana não rezou o “Mimimi”, tampouco Seráfico.

- Que estranho burburinho! Nunca ouvi nada igual.
- Loura... essa coisa sempre me causa arrepios. Até da pontada no peito.

O gordo gritou, do alto do cesto que carregava a imagem sagrada. Abrindo os braços, mostrando as marcas de suor:

- FALTAM QUINZE PARA AS SEIS!

Seráfico apertou a mão direita de Croma e a puxou.

- Vem comigo, pois a coisa vai explodir!
- Que vai o quê? Se-Seráfico que ocorre?

E a multidão disparou desvairada, em risos e choros. Gritos loucos, no corre ladeira. O pó que levantou, cobriu os topos calvos e as cabeleiras. Era corrida e tossida. Croma e seu amigo tropicavam de lado no cata cavaco, esbarrando com medo, até debandarem de bunda no trecho de mato. Também estavam descendo, mas no lado contrario da escarpa.

O vento balouçava os arbustos e filetes de um sol vermelho que desaparecia no horizonte. Acima da terra, as estrelas começavam a se interpor no céu azul escuro. Duas figuras assistiam o final do dia e escutavam ao longe a turba, que havia partido em desespero.

- Seráfico? O que aconteceu que fez as pessoas correrem como se fugissem do diabo? 4
- É assim que sempre foi. Assim o é. Como fez São Pardinho do Abaluê! As seis da tarde abandonou o diabo que o tentava na montanha, pois Deus lhe enviou um sinal. Às seis da tarde, seu estomago roncou e uma fome lhe arrebatou. São Pardinho negou as ofertas do diabo e correu para seu lar. Lá ele se refestelou num grande banquete.
- Uia! E é por isso que correram?
- Quem faz o trajeto e permanece aqui, como nós, no relento, após as seis horas da tarde... É enganado pelas artimanhas do diabo.
- Então lascou-se, homem.
- Credo em cruz!

Seráfico cruzou o “Pai nosso” no peito e encolheu o joelho.

- Mas então, que lhe passa na cabeça que não saiu correndo?
- Eu perderia a senhora de vista. Tu não viste a poeira que desgraçou toda a vista? E além do mais... Pela fé ou pela crença criativa desse povo... Fico EU mais o MEU jantar.

Croma corou as maçãs de seu rosto e riu do esquálido homem. Os dois puseram-se de pé e bateram o pó do corpo. Terminaram a descida guiando-se pela luz opaca da lamparina de uma cabana. Na entrada, um bode de três patas fungava uma tigela de água. Três moscas volteavam uma galinha branca e um gato sem rabo rolava pelas tabuas do solado. Croma e Seráfico avançaram exaustos, bateram na porta e prontamente ela foi aberta.

A loura bateu uma foto com flash assim que o vulto esgueirou sua cabeça para fora. O homem calvo e de nariz afilado fechou os olhos e abaixou a cabeça. Croma gargalhou e Seráfico permaneceu imóvel e inexpressivo.

- Desculpe-me senhor. Ai, ai, ai. É que sou fotógrafa e passo por essas bandas para tirar fotos espontâneas. Eu sei que nem de longe você esta acostumado com a luz de uma legitima clicada.

O homem a mediu de cima a baixo e com um sorriso de dentes amarelos a respondeu:

- Não sei se entendo suas palavras. No mais, convido-a para entrar. Se você esta vindo da procissão, digo que esta perfeitamente atrasada para os deveres.

Seráfico agarrou novamente o braço de Croma e fez menção de puxá-la para a direção oposta a da casa. Ela por sua vez, desvencilhou-se da trêmula mão e adentrou.

- Vem Seráfico... Vamos conhecer.
- Vem Seráfico... Vamos nos conhecer. – Repetiu o calvo homem de avental vermelho.

Cochichou Seráfico no sopé do ouvido da loura:

- Muito irresponsável entrar numa casa erma de um estranho.

Ela retorquiu no cochicho:

- Muito arriscado, pois aqui ninguém sabe quem é quem. Ele está na mesma situação que nós!
- Onde estamos senhora...?
- Ah... Estamos no sentido imediatamente oposto da cidade... Era isso que eu dizia a meu amigo. Alias, me chamo Croma Silvana e este é Seráfico Bonfim.

O homem puxou duas cadeiras e os fez sentar. Quebrou o gelo com risadas e perguntas corriqueiras. Fez-se de assunto e indagou sobre novas histórias. Ficou-se sabendo que seu nome era Montalbano e vinha de uma cidade afastada do outro lado do rio.

- Bom, é sempre um prazer receber visitas. Como hoje calhou de ser um dia religioso, estava eu a preparar um jantar de devoção.

Seráfico finalmente ergueu a cabeça e falou:

- Ah, quanta honra participar de tão digna refeição. Espero estar apto a provar sua culinária, Monsenhor Montalbano!

Os dentes amarelos riram de baterem-se uns aos outros.

- Ora, Seráfico... Há muito não me nomeavam por Monsenhor. Digo a vocês que tenho um forno recheado das mais deliciosas tentações.

Croma e Seráfico se entreolharam.

- E o que seriam essas guloseimas?
- Diversos traços comestíveis. Cor sim, cor não. No baile dos quadrados, lhes sirvo qualquer coisa em xadrez. Hoje, havia eu decidido degustar uma suculenta carne de bode. Trançada e riscada a faca. Amolei na lua dos chorões... Magníficas e tristonhas arvores do fim do mundo.
- Qual o quê? Bode? Este que tem três pernas?

Pela única janela do recinto feio, pequeno e surrado, incidiu um facho de luz vermelha. Por um momento, os três ficaram de cor sanguinolenta e as sombras dos poucos objetos inclinaram-se, uma por cima da outra. Cada pequeno quadrado parecia grudar na pele e este mosaico cerceou toda a pequenez daquilo tudo.

- Olhem, olhem! – Bradou Montalbano. – O sol voltou para uma ultima espiada.

Croma se assustou e ergueu instintivamente sua câmera. O fogão enferrujado começou a ranger. A porta do forno abria e fechava e dela saia uma fumaça de aroma delicioso.

- O forno! Olhe o forno! Esta se movendo... Está gritando! – Bradou Seráfico jogando-se por debaixo da mesa.

Do teto, serpentearam lingüiças caseiras que se retorciam de um lado a outro. Montalbano com um pulo pousou sobre a mesa. Com as mãos na cintura do avental, ele ria sonoramente. A cabana começou a rodar e como num caleidoscópio, as cores se alternavam sobre as pequenas dimensões. Croma Silvana clicava sua maquina a esmo, admirada com os eventos.

- Santo Abaluê do Pardinho, proteja-me de todo o mal. Resgata minha alma. Me tira deste mau bocado.

- Você é meu bode, negro Seráfico. Já se esqueceu de sua pena da romaria passada? Você que ousou vagar após as seis, blasfemando. Rindo do diabo. Passando fome. Lembra de como fui generoso? E de como lhe ofereci do bom e do melhor?

E Seráfico levou as duas mãos a cabeça e passou a chorar.

- Eu tinha fome... Você era diferente...

Croma Silvana, pela primeira vez, ficou com medo. Foi caminhando de costas, alheia em participar daquele quadro, até encostar as costas na porta da entrada.
Montalbano passou a expelir fumaça de suas narinas e seus olhos borbulhavam labaredas. Suas botinas estouraram e delas saíram pequenas cabeças enrugadas e disformes e das pequenas cabeças saíram línguas bifurcadas e das línguas bifurcadas brotaram olhos e deles abriram-se bocas e das bocas saíram batatas cozidas e do vapor das batatas refletiram-se Seráfico e o demônio. E no vapor vítreo, Croma, petrificada, assistiu o empalamento de seu amigo.

O Seráfico de carne e osso rezava todos os cânticos, ajoelhado sob a mesa. Sua boca tapou-se com uma grande maçã. Croma gritou:

- Corre homem de Deus. Salva tua pele.

Ela abriu a porta e o cabrito de três pernas voou em seu peito, derrubando-a sobre a mesa. A fraca madeira desabou e ficaram estendidos, Seráfico e Croma. Montalbano em sua forma horrenda permaneceu a flutuar. Um rodamoinho varreu a cabana.

Croma acordou. Sua primeira reação foi apertar a câmera envolta de seu pescoço. Olhou para frente e viu Seráfico retorcido numa assadeira. O gato sem rabo, com a altura de um homem comum, pincelava melado no corpo nu do negro. Croma bateu uma foto e o gato esgoelou seu miado. Montalbano, em sua aparência normal, agachou sobre Croma e assoprou gentilmente seu rosto. A loura foi arrastada porta a fora pelo sopro e continuou no embalo morro acima. A cabana diminuía de tamanho e entrava por terra abaixo.

Suja dos pés a cabeça e toda arranhada por espinheiras santas do caminho, Croma Silvana andou até o centro da cidadela de Pardo. Amanhecia no vilarejo e os pequenos comércios abriam suas portas. A encardida garota sentou-se numa mesa do mini mercado e pediu uma cerveja. Logo o dono do local puxou assunto e também seu ajudante fez gracejos. Croma narrou os fatos que marcaram sua noite fantástica, o casebre no meio do nada, o anfitrião demoníaco, o jantar quadriculado e seu amigo Seráfico; cuja pessoa, ninguém nas paragens nunca ouvirá falar. Poucos dias depois, revelou suas fotos, muitas belas e coloridas; infelizmente, após as seis horas, todas as imagens tiradas, eram nada mais que hachuras e um vulto borrado.


GIMENEZ, Croma Silvana. Novas Lendas do Brasil – Relatos Encantados Encontrados. São Paulo: Ed. Cipó ; 2008

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