quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Leonardo rolou da cama embolado em seu edredom e caiu com os pés encaixados em um par de chinelos. Ficou de pé como uma cobra, sorrindo e com olhos miúdos em direção ao facho de sol que penetrava pela janela. Arrumou-se com um traje esporte e foi à cozinha.

- Bom dia mãe.

- Bom dia, Leo.

Ele apertou uma tangerina do cesto e rasgou a casca com o dedão.

- Parabéns, querido. Feliz aniversário.

Sua mãe o abraçou com carinho e ternura. Acariciou seu rosto liso e beijou-o na testa.

- Valeu mãe. Tem presente ou é só abraços e beijos?

- Claro, apressado. Tem, sim senhor. Já que está cobrando. Pode pegar no sofá da sala. Espero que goste.

Ele largou a tangerina na mesa e correu para a sala. Desembalou a caixinha deixada pela mãe no sofá e ficou contemplando o DVD.

- Fantástico! Fantástico!

- Gostou querido? Seu pai disse que você ia adorar esse jogo de guerra. Parece que acabaram de lançar. Foi bem caro. É bom que goste mesmo, escutou?

- Pode crêr que vou terminar ele rapidinho.

Leonardo foi para o quarto e colocou o presente sobre o videogame. Voltou à sala e ao abrir a porta da rua sua mãe o chamou.

- Léo! Querido... Vai aonde?

- Hoje é o meu dia, que dia mais feliz! Parabéns, parabéns!

Leonardo riu do tom de seu cantarolar.

- Vai passear. Mas não fica na baderna com os amigos e volta antes do almoço, pois sua avó vai vir aqui te dar um beijo e a noite seu pai vai te levar pra sair não sei aonde. Não beba, escutou?

- Tá! 

O clima fresco, o sol delicioso e as ruas quase vazias do sábado singelo. Léo comprou cigarros na padaria. Riscou três fósforos, até entrar na viela para bloquear o vento e acender um deles com propriedade. Soltou a baforada e sua pele arrepiou-se. Sentiu a tontura da primeira tragada matinal. Era o estomago vazio. O sol rebitou os olhos dele por um segundo e no caminhar de passos largos, o pé esquerdo enroscou-se num arco de aço.

Estava lá o montinho de areia e a pilha de tijolos da obra improvisada de um morador da viela. E nos pequenos arcos de aço entortados pelo chão, Leonardo tropeçou. E ao que caia, na fração infinitamente curta de tempo, sentiu o garoto um frisson estranho. Com este sentir, sua pupila captou o contorno das pontas de lança voltadas em direção a sua cabeça. Pontas de lança estavam presas ao chão para proteger ladrilhos valiosos na pequena obra não autorizada. Tamanho o aperto no peito acometeu Leonardo que suas mãos rígidas agarraram duas lanças cada uma e seu corpo parou em perpendicular apoiado a forte pegada. No baque da anti-queda, junto à dor do rasgo na pele e do sangue que espirrou no chão, Leonardo viu um vulto saltando de seu ombro direito. Um vulto que ficou nítido para o garoto. Um ser sem formas aparentes, despido e sem sexo. Sua cor verde escuro brilhava e tremeluzia. No peito um circulo laranja pulsava inda mais forte que a cor verde. Leonardo estava estupefato com a situação. Já não sentia dor nas mãos feridas e nem ao menos fazia força para manter-se na incomoda posição. O ser vibrante à sua frente ficou longos minutos o encarando com olhos brancos. Leo derrubava lágrimas reprimidas pela face e juntou toda sua força para indagar a estranha aparição:

- Quem é ? O quê? Pode me ajudar? Quem está ai?

A aparição se moveu pela primeira vez, desde que a situação se engendrou. Caminhou para o lado de Leonardo e sentou-se no monte de areia. Nestes curtos passos, seu corpo transpareceu de forma anuviada a paisagem urbana do beco e ao tocar os quadris na areia, parte dessa flutuou pelos pés e estomago da criatura. Sua voz levemente nasalada ressoou com gentileza:

- Leonardo! Sou uma energia vinda de outro acorde dimensional. Tu me conheces pela alcunha de “aniversário”. Não sou uma divindade. Não faço parte de um pensamento coletivo que me coloque nas barreiras do bem e do mal, como vocês as definem. Cabe a mim, por prazer e convenções antigas lhe assistir em todos os dias de seu nascimento. E no momento, eu ainda não posso ajudá-lo. Talvez não o faça de qualquer maneira.

O garoto gritou em desespero. Tomado pelo medo, sua voz soluçava o nome de sua mãe.

- Pelo amor de Deus, socorro!  Socorro!

- Estamos num tempo fixo, fora de sua dimensão. Tu estas perfeitamente invisível e inaudível. Tenha paciência. Verá sua família de uma maneira ou outra. Tenha calma, eu aguardo junto a ti a decisão.

Após uma espera extenuante para os nervos abalados de Leonardo, ele pôde engolir um fio de choro e com  olhos vermelhos e inchados, tomou a palavra para si no silêncio opressor:

- Eu estou morto. E estou no umbral e você é um demônio ou um anjo. Meu corpo esta paralisado e não sinto dor alguma, mesmo que olhe para minhas mãos e as veja cravadas neste par de pontas de ferro imundas. E você estava esperando eu tomar consciência disso?

- Pelo contrário. Está vivo. E me surpreende deveras! Tua força de vontade foi tão forte no momento em que se deu a queda que sua vida, já no sentido natural dos eventos, emaranhou-se numa teia de improbabilidades. E assim, nossas vibrações dimensionais, por um microssegundo, tocaram-se. E eu não pude me esvanecer. Portanto, aqui estamos.
- Você está dizendo que eu iria morrer hoje?

- Possivelmente. Mas é muito prazeroso sentir a forma humana da vontade. Quase posso vê-La. Está em outra dimensão.

- Mas... Como assim? Você é o Aniversário em pessoa?

O ser riu abertamente e pousou uma mão sobre o ombro de Leonardo.

- Sou isto mesmo, que vocês nomeiam “Aniversário”.

Aniversário passa a mão em seu peito laranja e derruba sobre a cabeça do garoto um liquido da mesma cor. Leonardo é preenchido com uma sensação de calma e alegria que o cansa de proferir qualquer outro som.

- Nomenclaturas, são palavras construídas pela necessidade de comunicação e sobrevivência do ser humano, ao longo de sua necessária evolução. Pontos chave da vida como nascer, morrer e passagens que vocês absorvem como rituais; amar, odiar, desejar, enfim, tem todas suas representações arquetípicas noutro plano. Sou uma energia racional que domina os impulsos necessários para contemplar e comemorar o nascimento de cada ser habitante deste tempo. Sou mais antigo que seu primeiro pensamento sobre o que é antigo. Não... Eu sei que pensa em religião. Mas não posso abranger nosso encontro enquanto seu caminho não for ponderado.

- Ponderado por quem?

- A única vez que um humano conversou comigo, foi por um descuido em um dia especial. Era aniversário de um pescador solitário no interior do Canadá e quando raiou o dia, tive a agradável surpresa de visualizar o Amor sobre um lago parcialmente congelado. Era a primeira vez que nossas vibrações se equiparavam ao mesmo tempo. E aquele azul profundo de contornos vermelhos acenou para mim. Claro que mesmo com minhas percepções lúcidas, logo fiquei fraco, pois a visão me consumia. No mesmo instante o velho Goodman acertou-me com uma machadinha. Afinal, lago congelado não permite pesca. Seria muito trabalhoso cortar o gelo.

- O amor?
 
- Sim jovem. E naquele dia conversamos sobre tudo na vida. Foi contra a regra, mas foi por amor. E tudo é perdoado por amor. O Perdão é tão marrom.

- Estamos contra a regra?

- Tantas perguntas, Leonardo.

- Você pode me retirar daqui e me pôr em casa. Meu pai quer sair comigo e minha mãe e minha avó vão chorar muito. Eu quero tanto viver. Por favor!

A aparição levantou-se.

- Nossa espera chega ao fim. Fique calmo Leonardo. Está entre amigos. Não haverá dor.

A mão brilhante empurrou de uma vez a cabeça do garoto e esta atravessou o ferro pontiagudo. O restante do corpo caiu ao chão com um baque seco. Na entrada do beco, uma senhora derrubou as sacolas e gritou por socorro.

- Não nos veremos mais. Foi um prazer, desde que você nasceu!

Leonardo ergueu o peito do chão e puxou seu crânio com violência da estrutura fatal. A dor excruciante tomou conta de seu corpo. Uma voz diferente, uma voz nova e potente fez-se ouvir por trás de sua orelha direita:

- Livre-se da dor. É só um resquício de sua carne. Conheça sua nova vibração. Limpe sua mente. Sinta-se lisonjeado pelo encontro com o Aniversário. Decidi o levar. Conheça-me! Compartilhe!

Leonardo virou o rosto para trás e não mais sentiu medo ou qualquer sentimento.

- Eu poderia apostar que você tinha essa cor! Bem que poderia!

Com a nova aparição,  sumiu numa fenda amarela.

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