quinta-feira, 9 de setembro de 2010



Folha de cipó - Caderno Cultural - 20/03/2078
Humberto Donato do Espaço – Da sucursal em Saturno


Vanderlático Galáctico Soares Barbosa era de Canoa Quebrada, paraíso cearense. Terra do calor estafante, do mar quentinho, do turismo disputado. Artesanato caprichado de preço elevado, “quanto mais embolado o sotaque, maior o valor”. Peixe fresco, tipo exportação; camarão até ficar alérgico; pimenta caseira com gota de suor; pele bronzeada, bunda arrebitada. Homem, mulher, família, criança. Cenário de novela, barraca armada, muito vento. Ceará, terra do sol, de trabalhadores da história, para a história. Da figura do cabra homem, desperto na fúria em busca de alento.

O caso é que Vanderlático Galáctico Soares Barbosa carregava nos genes herança paternal de muito apreço pelas coisas do universo. De longe notavam a peculiaridade espacial de sua pessoa. Numa Canoa Quebrada, isolada naturalmente da corrida tecnológica pós-modernista, a maresia sempre ia de encontro ao baixinho sardento, marrento de cabelo mirrado e óculos foscos. Andava lá o doutor, assim chamado pela população minúscula do paraíso.

“Que doutor o quê”! Retrucava Vanderlático.

Sempre muito discreto. Reservado com os vizinhos, quieto na dele, enfurnado dia e noite dentro de casa. E só andava lá nos arredores para recolher pacotes no correio. A cada semana uma encomenda chegava. Uma caixa maior que a outra.

“Ô dotôzinho, que mala é essa”?

“Que doutor o quê”!

Assim, causando o maior burburinho local, passava de lá a cá o Vanderlático. Morava bem o macho rei. Filho de garanhão holandês, que deixou boa quantia de dinheiro antes de sumir de vista. Não se pode dizer que sumiu, pois não chegou mesmo a dar as caras quando nasceu a figurinha do Vanderlático. Vem daí a falta de estrangeirismo do sobrenome. A finada mãe discorria diariamente sobre o pai fugido “Safado, bastardo, estabanado, bandido”, que ele era “ufololólogo”, nas palavras dela. Deve ser daí que encaixou o Galáctico no meio de tanto “ático”.

E o danado se formou com honra e mérito na capital, Fortaleza. Fez faculdade particular e tudo o mais que tem direito, de pós, pós-pós, pós-pós-pós, só não fez doutorado mesmo. Senão até aceitaria a alcunha popular. Na pacata Canoa Quebrada, era ele o trigésimo sexto morador formado com tanta medalhinha no peito. Vanderlático formou-se em engenharia quântica. Foi o que espalhou dona Mercedina pelas quitandas do arredor. Ela também espalhou que dona Néia morreu de desgosto, pois Vanderlático já beirava os quarenta anos e morava em casa, sem nunca namorar.

Está ai, devidamente apresentado o Vanderlático Galáctico Soares Barbosa. O homem ferrenho, com um nome que até já enjoou. Mas o que se deve prestar bastante atenção é na pessoa inda mais reservada, que é justamente Lenise Pataróca. Personagem principal de um evento bem bisonho, de difícil crédito na praça. E o caso é que Lenise vivia sozinha na única casa azul de Canoa Quebrada. Continuação imediata e geminada da casa de Vanderlático. Lenise na azul e ele na amarela. Um colorido bem acertado para a região praiana.

Senhorita Lenise Pataróca era mulher solitária. Já batia na borda da idade da loba, “Ela tem quarenta e quatro” dizia dona Mercedina pelas quitandas do arredor. Nascida em Jequitinhonha, pulou de município a município, nunca muito longe do chavão eterno e deprimente do mineiro: um pão de queijo, um leite quente e um mato no meio do dente.
A família não pode ser explicitada, pois não vamos dar conta de esmiuçar os doze irmãos, os vinte e quatro sobrinhos e toda a cachorrada de estimação. Importante sim é constatar que na sua índole solitária, veio pegar uma cor menos azeda nessa terra de sol, sozinha de tudo e fatidicamente, vizinha do Vanderlático.

Seguia sempre na santa paz, fazendo o que lhe era de mais interesse. E o que lhe subia nas entranhas era a escrita. Lenise Pataróca, autora do sucesso “Sabiá de porcelana”, segue trecho:

“ Pode esmigalhar o reluzente Sabiá. Este recalcitrante pecador sonoro. Na janela púrica de meu quarto, bicando meu cetim perolado. Deste lado estou, onde o prenderei. Aguardo-te, para enjaular a eternidade do seu piar”.


Tenso, maçante e irritantemente parnaso; Lenise fez muito sucesso em Canoa Quebrada. Espalharam-se paródias em todos os cordéis da região. Uma mulher moderna, que soube arrancar o ganha-pão com mais edições destes cordéis, debochados e parnasianos.

O caso é que chegou um dia, terça-feira normal de labuta, que Vanderlático estava a ponto de encerrar seu invento. A partir dos pacotes recebidos, ergueu-se o octaedro parafernal, repleto de fiação. Segue a lista por ordem de colocação: 

Sessenta placas de alumínio, vinte transistores, três microprocessadores, dois cabos super condutores, cinco parabólicas médias, vinte metros de fio de cobre, quatorze interruptores, dois monitores, uma bacia com água, um espelho e uma bateria para caminhões.


Na expressiva construção, que empatava toda a sala de estar, estava o inventor apertando o último parafuso. Puxou o rolo da tomada até a caixa de força e conectou os pólos diretamente na chave de energia. O zunido ecoou do octaedro, seguido de um tremelique espalhafatoso. Na tela do monitor, vários espirais piscavam intermitentes. Vanderlático abriu o livro “Eram os deuses astronautas? de Erich von Däniken” e afundou os óculos foscos numa leitura compenetrada do quinto capitulo.
Enquanto isso, Lenise travava certa batalha materialista com um parágrafo de seu novo trabalho.

“Linda e delicada, ela espreme roupa na beira do rio. Suspirando com sabão de coco no colo do seio farto, aguarda surgir o homem de sua vida, alto, forte e corajoso. O homem que a amará. Quem sabe não seja o Barão Albuquerque Mantiqueira? Suspirou Linese enquanto esfriava as ancas na água doce”.

Os olhos da autora marejavam ao contemplar a personagem. Em sua cabeça, a obra máxima estava já formada. Linese Peixoto, camponesa apaixonada e Albuquerque, temido por todos. Estava espelhando todos os sonhos em tal representação. E o reflexo gritava, obviamente, na troca de letras de seu nome com a fictícia projeção. Baita imaginação que lhe falta, essa é minha opinião. E apesar de toda uma vida de vontade suprimida, permanecia empatada neste trecho e sua escrita não evoluía. A espera pela inspiração rendeu um sonoro baque na parede da sala.

“Que loucura está aprontando o Galáctico?”

No lado de Vanderlático, a parafernália inconstante tremia cada vez mais. As páginas de Erich von Däniken estavam espalhadas por todo o canto. Cálculos e fórmulas incompletas foram riscados nas paredes. Vanderlático resmungava com os pés dentro da bacia de água e de fronte a tela do radar. Em seu rosto, estampava-se a decepção. Toda a labuta dispensada naquele caótico ambiente parecia não estar resultando em nada.

“Falta algo nunca antes tentado”!

A luz da genialidade acendeu sobre o homem. Ansioso, correu para a cozinha na esperança de um químico mágico, toda a cozinha tem químicos constituídos muito utilizáveis para salvar seu invento. E sem muita ponderação agarrou o objeto catalisador de todo o derradeiro fim de caso. Vanderlático voltou ao octaedro, lunaticamente empolgado. Com a convicção de um pós-pós-pós graduado, desarrolhou a tampa da matriz, fonte improvável de força sinistra. Eis a solução desesperada, a grandiosa pérola alimentícia do nordeste: a manteiga de garrafa!

Lenise encarava a parede de sua sala após o enigmático baque. Na tela do computador piscava a barrinha do editor de textos.
 
“Linese |”

 
Piscou os olhos e deixou apenas um dedo sobre o teclado. Com o corpo retorcido em direção ao ruído, viu a parede ondular como um lençol ao vento. O ruído contínuo engolfava o ambiente e a cor palha do ondulado passou a esmaecer e então escurecer. Um negrume se apossou do reboco e a casa geminada alquebrava aos poucos num terremoto. Branca e azeda, Lenise era um monumento rígido de medo. A parnasiana nada podia descrever de tão etéreo fenômeno. Fatalmente engolfada pelo buraco negro aberto na parede, ouviu-se neste instante por toda a cidade um potente “Chomp”.

Do jeito que foi tragada, imediatamente foi cuspida. A parede voltou à cor palha e o ruído contínuo havia cessado. A casa permanecia esfarelando no tremor. Na tela do computador somente estava a barrinha piscando.

 
“Lenise |”

 
Vanderlático arrombou a porta do lado amarelo e adentrou a sala, todo lambuzado. Através do embaço de seus óculos gordurosos, conversou com a figura sorumbática sentada à sua frente.


“Dona Lenise, temos que sair daqui, o mundo irá desabar. Criei uma máquina de absorção atmosférica. Não to dizendo missa, entenda. Acabei de criar um mini buraco negro. Culpa da maldita manteiga, escute, levante-se, ande! Ô bezerra, desempate”!

Apalpando e puxando o braço dela, Vanderlático discursava apopleticamente.

“A manteiga de garrafa é forte demais. Ultrapassou todos os limites voláteis do meu mecanismo. Pobre de mim que pretendia fazer contato com alienígenas, Marte, Saturno, Júpiter, talvez Vênus... O alemão estava certo, o...”

“Acaso teu nome, oh ser de tamanha ignomínia, é Barão Albuquerque Mantiqueira?”

“Má deixe de munganga mulher, bóra logo!”

Dona Mercedina pousou como uma varejeira malvada na janela.

“ Hum... E esse rala bucho ai, hein? Mais ta que ta, viu? A casa chega é a tremer com o roçado dos dois”.

Dona Mercedina bateu asas pra longe, sem deixar margem pra resposta.

“Meu nome é Linese Peixoto e caso seja tu meu príncipe, deixo me levar aonde quiser!”

Na tela do computador piscava ainda a barrinha.
 
“EU SOU LENISE PATARÓCA, SEU LOUCO DESGRAÇADO. ME 6*&()_(o*y LESO |”
 
“Arreia peste!”

Vanderlático chutou o computador pra longe e este se espatifou no piso. A luz do dia invadiu com intensidade a casa e um barulho de maquina ensurdeceu a todos. Lenise ressurgiu de cócoras entre os cacos do computador, encarando sua cria Linese. O teto, que caia ao chão quase por completo, foi desmaterializado de uma vez. O vento rodopiou dentro da casa e Linese gritava:

“Albuquerque, Albuquerque, salve-me! Essa versão vai expirar, compre o original! Salve-me, Albuquerque”!

O cientista largou o braço da mulher-personagem e ergueu as mãos para o céu.

“Sejam bem vindos! O humano dentro de mim saúda o humano dentro de ti!”
 
“TERRÁQUEO BATRÁQUIO. TEU SINAL IMANTIZOU NOSSO SISTEMA LIMBICO”

Nas alturas recortou-se um buraco negro. E entre o solo e a nave-charuto, foram os três sugados numa espiral. Subiram junto os cacos do octaedro e a garrafa vazia da manteiga. Detalhe para o rótulo que permaneceu grudado no piso:

Manteiga Derretida Bulutrica.

Os conterrâneos de Canoa Quebrada vieram em peso naquele final de tarde. Pescadores remaram em direção a praia e crianças abandonaram as brincadeiras. Cercaram a casa azul e amarela para fofocar. Do suposto balão prateado até o estouro de um botijão de gás, ficara mais conhecida a explicação da testemunha ocular, Dona Mercedina. Só no dia seguinte, numa quitanda dos arredores que ela explicou aquilo que não viu, ou que viu, mas não processou.

“Foi com essas gemas do meu rosto, veja bem, que eu flagrei o dotôzinho todo malamanhado. Tava agarrado com aquela estranha escritora; é sim. Tocaram fogo na casa, e é como falaram os pescadores mesmo. Fugiram num balão prata. Vi uma parte, outra parte sai fugida que eu não sou futriqueira”.

Assim foi o caso. Imortalizou naquela banda uma dezena de talentos no cordel. E despertou novas paixões pelo céu estrelado daquela ponta boa do Brasil. Essa foi minha oportunidade de romancear uma dessas historinhas que li por lá. 




1 comentários:

Anônimo disse...

AHA!!!!
.
Eu posso dizer, com muito orgulho, que tive parte na gênese desse conto!!! AHA!!!
.
Bom, pelo menos em uma parte pequena. rsrsrs
.
Bom, vá lá, um nome...
rsrsrsrs

Abraços!

 

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